31.12.10

O Jardim

...dedicado aos Jovens de Coração.


Seja bem-vindo, caro amigo. Justo a tempo. Estava a começar nosso pequeno relato do gia, mas explico uma vez mais sobre o que é, e mais importante, sobre quem. Sente-se, tome lugar. Sinta-se confortável.
Esse relato me foi contado por amigos que viajavam pelo pacífico e por acidente encontraram uma ilha desconhecida. Desconhecida por eles mesmos e pela nossa civilização. Essa ilha todavia segue desconhecida por nós e pela modernidade graças ao tato de meus amigos. Ela continua anônima e intocada. Curiosamente, nossa civilização sim era conhecida por seus habitantes, tanto que eram fluentes em diversas línguas. Bom. O relato que lhes vou contar foi contado aos meus amigos por Gumna Ti, um dos muitos sacerdotes da ilha, em uma espécie de culto realizado em uma pequena lagoa. Essa lagoa era realmente pequena e, segundo me contaram, muito silenciosa. Gumna subiu em uma espécie de balsa e guiou-se até o centro da lagoa com um cajado, e os ouvintes sentaram-se na margem a escutá-lo. Meus amigos eram os convidados de honra de Gumna e foi a eles a quem dedicou mais atenção e afeto no momento. Gumna lhes contou a seguinte kamta, em nosso idioma:

"Anos atrás, na minha mocidade, existia um rapaz muito mais jovem que eu, chamado Kiri. Ele era um garoto calmo e tranquilo. Muito calmo. Calmo, calmo. Sua mãe se preocupava com sua falta de atividade e não sabia se ele estaria apto aos trabalhos do Muva. Seus vizinhos se dividiam em relação à Kiri, uns achando-o vago e inútil, outros, às vezes, observavam-no com curiosidade e interesse... E eu era um desses. Kiri passava grande parte do tempo passeando e descansando. Do quê exatamente, não sabemos, pois ele aparentemente não fazia nada. Mas a verdade era que somente nas horas em que as pessoas o viam era que ele estava ocioso. Bem, um dia sai a passear perto daqui... e no meio do passeio cruzou rapidamente em minha frente uma serpente e logo três pássaros, voando na mesma direção! Tenso, pensei ser uma brincadeira de Fryula incendiando a floresta... mas não senti cheiro de queimado algum. Logo me acalmei... e de golpe um vento terrível soprou! Na mesma direção que os animais correram! Tenso novamente, pensei: ‘Vriula está nervoso!’.. Mas outra vez me acalmei e algo me fez seguir na mesma direção que o vento e os animais foram... e encontrei Kiri sentado nessa mesma lagoa onde nós nos encontramos. Creio que ele não percebeu minha presença... Kiri estava com um aspecto jovial e feliz, sentado olhando para o meio da lagoa. Aqui onde estou agora. E percebi que Kiri estava em um intenso estado meditativo... Fiquei em silencio, meio escondido, alí, um pouco mais atrás de onde estão nossos convidados, contemplando-o.

Passaram-se horas e nós dois não haviamos nos movidos nem um piclo. Encontrei-me no mesmo estado que Kiri, e senti uma estranha porém cordial união com ele. Kiri começou a gesticular algo. Sons saiam da sua boca. Sim, ele estava falando. Sua voz me trouxe de volta à ryula. Sua voz dirigia-se ao centro da lagoa. Kiri conversava com algo invisível e pelas pausas que fazia, pensei que estava dando à esse nada uma chance de resposta... E eis que uma voz soa no ar.

Não identifiquei a voz. Não a conhecia. Ela vinha daqui. Justo aqui. Desse mesmo lugar em que falo a vocês. Limpei meus ouvidos, chacoalhei minha cabeça, fechei e abri meus olhos diversas vezes, e a conversa continuava. Senti medo. Pensei ser um intruso nesse momento tão privado e secreto. Mas logo senti uma permissão ao meu corpo. Sim, eu devia estar alí. Justo aí, onde vocês estão. Preparei meu ser, minha mente, minha alma, meu corpo, meu espirito, enfim! Meu ser! Para escutar uma sabedoria única... Secreta.. Divina! Iluminadora! Uma sabedoria que iria acalmar todas nossas ânsias e dúvidas! Preparei bem meu ouvido... Me esforcei a escutar tudo nítidamente... Kiri ia fazer uma pergunta sábia, eu sabia. E as palavras que ouvi saírem da boca de Kiri foram as seguintes: ‘Mas, ó, caro amigo! Porque eu tenho que caçar um javali para provar meu amor por ela?!’ Meus olhos se arregalaram no instante e não acreditei no que ouvia. Como esse rapaz faz uma pergunta assim à Ula?! Melhor que viesse a mim com essa pergunta ou para qualquer homem do Muva! Mas tudo bem... Estranhei, confesso, e foi uma atitude estúpida, confesso também, pois todas as dúvidas são válidas. E atenção: Ula estava a escutar-lhe. E Ula lhe respondeu:

‘Jovem Kiri... Vou contar-lhe uma história. Há muito tempo atrás... Existia um certo jardim. Um grande e belo jardim. Eu amava esse jardim com todo o meu amor. Com toda a minha força. Ele era todo o meu espírito. Eu era esse jardim.
Nesse jardim haviam todos os tipos de flores e plantas. Impérios de insetos eram construídos e desconstruídos alí. Toda uma gama de seres e civilizações passaram a ser e a não ser alí. Mas uma flor em especial chamou-me a atenção. Hoje ela é conhecida como Dente-de-leão. Esse dente-de-leão cresceu ao meio de belíssimas rosas, violetas e orquídeas. E foi por uma dessas últimas que esse dente-de-leão se apaixonou. Essa orquídea era branca e de uma beleza inigualável até os dias de hoje. Bom, naqueles tempos, as flores cortejavam umas às outras com cantos. Elas tinham que cantar um canto próprio para declarar o seu amor pela amada. Assim sendo, muitos e muitas flores dedicavam à essa orquídea as melhores canções, as melhores melodias que podiam criar. Era-lhe devotada a nata do amor e espírito de muitas flores. Essa orquídea cresceu vaidosa e difícil de conquistar. Ainda não havia escutado o canto que despertaria o seu coração.
O dente-de-leão, frágil como era, não podia cantar. Seu corpo não lhe permitia tal ação. Uma vez tentou chamar a atenção da orquídea, mas sua voz mal foi ouvida, abafada pelos cantos dos outros tentando conquistar o coração da bela flor, e sentiu seu corpo desfalecer. Outras flores o escutaram e ridicularizaram-no. O dente-de-leão se retraiu fortemente por meses em uma profunda melancolia.
Essa é a dor do dente-de-leão. Essa é a dor do amor do dente-de-leão. Esse é o amor do dente-de-leão.
Um belo dia - inesquecível dia - o Sol havia brilhado mais tempo que usualmente e a orquídea despertou mais bela que nunca. E o dente-de-leão despertou da melancolia, encontrou-se ligeiramente maior, belo e mais corajoso que nunca. Respirou fortemente e cantou a seguinte canção à orquídea:

Amor, amor
Dias melhores virão
E vou poder cantar
O meu canto
Todos os dias


Amor, amor
Dias melhores virão
E vai te acompanhar
O meu canto
Todos os dias

A orquídea sentiu algo despertar em seu coração. Sentiu a vida inflar-lhe amor. A melodia longamente desejada finalmente existia... Ela virou-se em busca do dono da voz... e nada viu a não ser pétalas de um dente-de-leão, lentamente voando com o vento pelo belo jardim...’

O jovem Kiri parecia alegre com a história, estava absorto em pensamentos, e reflexionava com um sorriso curioso... A voz desapareceu e tudo pareceu voltar à normalidade... Aos poucos os pássaros voltaram a cantar, a água a golpear lentamente a margem da lagoa e os galhos a conversar com o vento. Me retirei sem ser percebido e pensei muito na história contada por Ula... Pensei muito no porquê que fui permitido estar alí... Vocês... Sabem o porquê? Não? Eu também não... Bom. Voltei ao nosso Muva, pensativo. Não sabia se deveria ou não falar com Kiri sobre essas coisas e sobre minha intrusão...

Dois meses se passaram e eu não havia dito uma palavra a ninguém sobre o que acontecera, e todas as noites nesses dois meses eu pensei no acontecido. Até que um belo dia vi Kiri caminhar em direção à moça mais bela do Muva... E não foi para dar um javali como prova do seu amor, como era o costume.
Ela estava na praia olhando para o mar. Kiri se aproximou dela, suavemente segurou sua mão com suas duas frágeis mãos e lhe disse algo. Algo. Ela claramente se emocionou, curvou-se agradecendo a Kiri por suas palavras, deu-lhe um beijo na bochecha esquerda e se retirou com alegria para sua tenda. Kiri alí ficou. Com a postura reta, o peito inflado e cheio de bem-aventurança, respirando lentamente. Quem o visse naquele momento o tomaria por um grande guerreiro... Mas era apenas um jovem garoto. Tomado de uma paixão e entusiasmo indescritíveis corri a contar-lhe o que havia acontecido há dois meses atrás, com todos os detalhes e todas minhas dúvidas e terminei por perguntar-lhe o que ele disse à moça e o que tinha ela com o ensinamento de Ula. E Kiri contestou-me:
- Nada.
- Nada?
- Nada.
- Mas... Você não é o dente-de-leão?
- Não. Eu sou o Jardim.”

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