Cruzou quatrocentas verstas de nuvens até chegar a Nebula Paus, casa de Valasta. Babeloque estava sujo de ciano e magenta, trazendo o grande pincel amarrado às costas. A viagem valia a pena: contar suas conclusões à baleia era como jogar xadrez consigo mesmo. Ela testava as certezas de Babeloque com provocações simpáticas, apenas pra vacinar suas teorias.
Vivia em paz no rolar dos dias e noites a senhora gigante, vagando em sua nebulosa por incontáveis pensamentos e contemplando incessantemente o firmamento. Disso, fruía da companhia do espírito nu.
- Valasta, considere uma pintura que mostra uma árvore representando a vida passiva e determinada de um homem. O conjunto da obra vai induzir o contemplador a esta significação - ou ao menos sugerir, com outras figuras, esta conotação. Posta naquele universo, a árvore deixa de ser a árvore pra representar o homem. Mas não deixa de sê-la completamente, já que sua aparência descontextualizada e primordial continua pura. Acho que é nisso que consiste a metáfora: na figura suspensa.
- Mas se a intenção é expressar o homem, por que não se usa o próprio homem como figura, ao invés de uma árvore?
- Hm... Talvez porque toda figura tenha uma carga intrínseca de significados e possibilidades de entendimento. Aliás, toda existência é carregada simbolicamente. O homem é o homem, mas também é a sociedade, o yang, o marido, a vida, a força, e mais mil conceitos. O metrô subterrâneo das cidades grandes, para dar outro exemplo, é o âmago, o abismo, o inferno, o efêmero, o atalho.
Babeloque voou por cima do dorso da baleia, pensativo. A ponta do pincel desenhou, sem querer, uma forma rosa parecida com um H no couro da senhora gigante. Então prosseguiu:
- É por isso que a suspensão da figura é necessária. O uso da árvore libera o homem - imagem pretendida - de seus significados intrínsecos (vida, sociedade, mundo, força, yang).
- Mas e os outros significados da própria árvore?
- Esses outros são omissos pelo contexto em que a figura principal se apresenta. O esforço do artista é o de conduzir a figura suspensa à sua conotação pretendida.
A fala da baleia era muito pausada: a conversa durou três noites e três dias.
Perdão
-
Quisera ver-te em suplício
mas logo me dou conta
– e, de tudo, logo isso! –
que tu és eu.
Sou eu quem me amedronta.
Quisera acusar-te de tudo...
8 comentários:
Penso no esforço do artista como a oferta e a procura do coração de um leitor para quem seus significantes tenham significados em comum, e assim, possam ter um caso de amor... ou um encantamento, ao menos.
iÊ!
"Hey, man.
Você precisa sair pro mundo como eu" Talvez esse seja um verso da Ave Sangria, talvez um do Babeloque.
É, não consegui pegar a questão da suspensão da figura, é suspensão de descolamento de um contexto, ou um suspensão física onde a árvore flutuaria? Imagino que seja o primeiro.
Victor, é teoria enumerativa artística isso. E tenho lá minhas dificuldades com a representação. Acho que representar é pouco quando se pode propor algo isento de intenções encobertas. Sabe disso.
É pouco colocar a árvore pra pensar o homem, quando a árvore só, sem ser representativa já dá argumentos pra pensar de tudo. Ela própria pensa as coisas por nós por existir em nós.
Agência. Representação uma pinoia!
Babeloque e Valasta sim, são coisas que me agradam. Agora o artista ter que ficar fazendo árvore pra conseguir mostrar do homem o que ele quer, isso é fabulismo furado.
Boa, negão.
Entendo seu ponto com a representação. Mas o quinhão-ensaio do conto (explica "teoria enumerativa" num parêntese aí, tá?) diz respeito à metáfora. O jogo não discute o valor da representação - talvez numa discussão acerca do valor dela, eu me veja concordando com você, quando você pontua ser "pouco" frente às outras possibilidades das figuras.
Mas a questão que Babeloque traz é justamente essa, e ele não questiona o valor da metáfora ou da representação. Ele traz uma excitação em tom de descoberta, onde vislumbra a figura suspensa. Você está certo, o conceito está mais próximo do primeiro chute que você deu (deslocamento do contexto), mas ainda assim, a figura suspensa é essa que está no meio do caminho entre ser o que o contexto ordena, e ser a coisa em si, a idéia, a origem - que pensa as coisas por si só, por existir em nós.
Não é fabulismo furado não. Babeloque apenas não discute o valor da representação. O que o enche de entusiasmo é esse limbo, esse em-cima-do-muro em que se encontra a figura que pretende ser metáfora.
E "agência" foi uma ofensa sagaz da sua parte, hahaha, seu viado.
É isso, nega véia.
Bom demais abrir papo contigo.
Um abraço!
Ih,
foi ofensa não.
De jeito nenhum.
Olha, Agência é oconceito que atribui ação à coisas inanimadas.
Assim: quando vocês escreve um livro e depois de pronto ele passa a ser lido e influenciar pessoas a fazer coisas, inclusive coisas que você nem tinha pensado quando escreveu, isso é um dado de agência do livro.
O livro passa a ser dotado de agência. Uma imagem de santa, quando alguém a vê e chora é dotada de agência. Apesar de morta e sem vida e de barro, o significado que se atribui a ela faz com que ela provoque ações e tomadas de decisões.
Isso é agência. Não tem nada a ver com publicidade, se foi isso que pensou. E me desculpe se caiu nesse tom, espero que ninguém mais tenha entendido esse sentido que apontou.
Teoria enumerativa com um conceito que usei pra distinguir teoria que só enumera conceitos e partes de coisas, como os nomes das partes da pata da mosca em biologia, da teoria que critica, da teoria que traz ideias à mesa pra criticá-las e repensar aplicações e elucidações sobre temas.
Victor, metáfora é representação. E é disso mesmo que tÕ reclamando, de uma preocupação do personagem em dar importância à metáfora, quando a teoria do não objeto (já comentada nesse espaço) trouxe beneficamente para as artes a possibilidade do objeto, objeto destituído de representatividade, objeto coisa em si.
Queria só que o Babeloque saísse dessa. Mas é super fofo o conto, conto de sábio chinês com a cara cheia de haxixe.
A ideia de suspensão é isso mesmo. Ah, tõ vendo uma coisa legal de liminaridade, estágio em que as coisas não são nem o que eram, e nem ainda o que vão ser. Parece que essa ideia de suspensão sua tem a ver com isso.
Certo, mano. Tá tudo aí, cê sacou. Acha Babeloque chinês, é? Dá-lhe china, gato. A teoria do não-objeto (objeto destituído de representatividade) significa a morte da representação? A metáfora é velha, mas continua gostosa, Heyk.
Olha, fiquei curioso: fala mais sobre liminaridade.
Abraço!
Sim, metáfora. Eu fiquei de saco cheio dela já faz um tempo, quanto descobri o não objeto do Gullar abracei.
O que acontece: desde os anos cinquenta acho, desde o construtivismo russo acho, de o mondrianismo na vida e tudo que veio com esses, a representavidade perdeu força. Dá-lhe daí toda a arte abstrata e outros desdobramentos.
O problema: graças ao excesso de abstração e hermetismo, tudo ficou duro e pálido e imagético.
O que houve e há no momento: uma volta a narrativa: isso não sou eu quem diz é o Vogler, que é cascudo e me disse isso na sexta feira. Disse: é chute, mas acho que o pessoal cansou do hermetismo e a narrativa vai voltar, não com os mesmos problemas que ela tinha antes, mas revigorada e mais esperta.
Tô pra concordar com ele. Leia-se narrativa como linearidade na peça: seja de qual gênero de arte for.
agora, Liminaridade, é isso: é o fronteiriço, o border liner, aquilo que não está na estrutura, mas no interestrutural, no entre estruturas, aquilo que não é nem o que era, nem aquilo que ainda vai ser. É o sem nome passageiro, que toma uma cara harmônica num momento seguinte e se envolve num processo novo para si, mas já existe; ou aquilo que depois desse sem nome, rompe com o existe e cria novas categorias.
A liminaridade é um momento de reflexão e investigação das categorias e formas de existir existentes, é a hora de fechar pra balanço e também de fazer planejamento para os próximos momentos.
Tudo isso tirei das coisas de antropologia da experiência e da performance do victor turner.
Veja lá.
Sou menos, já não sou mais
não faço, mas tanto faz
meu único amor no mundo
são as árvores
só elas, com segurança
não me desprezam
as flores morrem
amores morrem
mas hei de inventar a pinga
do eterno porre"...
Osvaldo Pereira
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