"O centro envenena as extremidades". Li o dito na saída da balada, onde a música eletrônica ainda fazia minha pálpebra pulsar - eu fico um pouco ranzinza às vezes. A frase estava escrita na roupa de um tipo bizarro; capa preta, máscara de gás e um guarda-chuva fechado, servindo de bengala (não chovia). Ao seu lado, qualquer coisa aparentando uma câmera antiga - um cubo de madeira sustentado por um tripé. Segurava, ainda, uma maleta na mão esquerda.
Me aproximei, meio encantado. Na caixa estavam encrustados três dobrões, atestando a idiossincrasia antiquária do objeto. A criatura permanecia impávida.
- Como é que faz?
A máscara apontou suas lentes para mim: um mistério terrível no semblante industrial. A mão enluvada se estendeu, pedinte. Procurei moedas no bolso, e só encontrei uma de vinte e cinco. Ele abriu a maleta e retirou um cartão; girou uma manivela pesada, e pelas curtas frestas da caixa vazou uma luz líquida de ouro. Introduziu o cartão na caixa e me induziu à lente frontal. Inseguro e curioso, olhei pela lente de aumento e, súbitamente, a rua desapareceu por trás de mim. Me vi num quarto de tons pasteis e lâmpadas mortiças. Tudo era desordem: as cortinas se revolviam emboladas sobre o sofá rasgado, os papéis de parede estavam arranhados, e as luzes da direita destruídas. Uma ânsia percorreu meu estômago, como se vermes do inferno desejassem meu cadáver. Pelas janelas, muita fumaça, e um gosto podre entre os dentes. Meus braços formigavam, pesados como vigas de chumbo, e meus olhos ardiam e lacrimejavam. Percebi então um sussurro crescente, que sibilava:
- ...as extremidades, envenena as extremidades, envenena as extremidades, envenena as extremidades!
Só então surpreendi a presença que me espreitava de dentro do armário, num fundo escuro do recinto. Ela era a responsável por tudo. Gritei e forcei meus braços contra a caixa, e só então consegui sair daquela dimensão ilusória.
Uma vertigem poderosa me acometeu quando olhei à minha volta, tão grande foi a descarga de desordem. Meus esforços cognitivos, a duras penas, realizaram: eu estava em outro lugar. Um campo bucólico, ao amanhecer. Ouvia quero-queros chilreando a canção do sol nascente, sobrevoando a lagoa que refletia o céu de degradês e as sombras muito negras das árvores em redor. A serenidade envolvia a existência. Havia uma casa amarela entre as colinas; senti frio e tive vontade de me abrigar. Ao toque da campainha surgiu uma senhora de cenho firme à porta:
- Pois não?
- Eu... me deixaram aqui na frente da sua casa...
- Como?
- Acho que dormi muito pesado ontem à noite. Não sei como vim parar aqui.
- Quem é você?
- Meu nome é Álvaro. Moro nos Jardins.
- Jardins?
- É, ali perto do Metrô Consolação.
Ela fez cara de quem não fazia idéia de onde era o bairro dos Jardins. Aconteceu um breve silêncio, durante o qual percebi que era muita sorte a minha - ela mantinha a porta aberta, disposta a me compreender.
- Desculpe, minha senhora, mas onde é aqui?
- É o Lagoa Bonita.
Devo ter feito a mesma cara que ela fez.
- Eu não conheço aqui. Como faço pra ir pro centro?
- Centro de onde?
- De São Paulo.
- Vixe! - ela abriu um riso simpático. - Aqui é Engenheiro Coelho. São Paulo tá há umas duas horas daqui. Entra, vou te mostrar como chegar à rodoviária.
Ela abriu o portão e me recebeu. Tomou a dianteira e entrou na cozinha, deixando-me no rol de entrada. Embrulhei os braços um no outro e vaguei pela sala, expelindo o frio de lá de fora e explorando o aconchegante ambiente. Havia um arranjo de fotos familiares perto do espelho, e num retrato da senhora lia-se na moldura: "Giuliana Spini". Fui chegando perto da cozinha e quando olhei pela porta, lá estava ele! Ele, com as luvas cheias de espuma de detergente, o cavaleiro negro com sua terrível máscara industral, me puxando para o abismo da insanidade com seu aspecto diabólico. Minhas vias aéras se trancaram automaticamente, e meu semblante externou completo desespero. Sua figura apenas me observava, poderoso como um juíz divino. Tudo se envolveu de halos escuros e meu corpo foi ao chão, asfixiado.
A campainha insistia em toques cada vez mais impacientes. Acordei com o peitoral muito dolorido. Me levantei e percebi que não havia ninguém na sala, nem na cozinha. Fui até a porta e, antes de abrí-la, olhei pelo olho mágico. Então tudo desapareceu novamente, a casa deixou de existir no tempo.
A vertigem foi muito forte desta vez. O fenômeno já não era mais novo, mas a esta altura já estava envolta de muitos sentimentos negros. Não lembro do que vi assim que cheguei. Caí inconsciênte num chão duro.
Perdão
-
Quisera ver-te em suplício
mas logo me dou conta
– e, de tudo, logo isso! –
que tu és eu.
Sou eu quem me amedronta.
Quisera acusar-te de tudo...
9 comentários:
seus contos tão crescendo! gostei na ilustra do futuropublico.wordpress.com sim!
é mangazoide, mas cuiosa.
Precisamos conversar sobre isso!
Pois é, Heyk, têm crescido. Que coisa, não?
Valeu pelo comentário da ilustra, haha. É isso mesmo.
Abraço!
train speaking!
ô negão, tá muito gostoso.
adorei as personagens... a velha, o juiz divino, o viajante.
o centro envenena as extremidades... é o fluxo.
muito legal irmao. uma boa viagem.
abraço negumba.
que balada você foi e o que você tomou lá?
As viagens do inconsciente sempre têm o mesmo destino. O que muda são as rotas. Mas o essencial é atender à campainha. E voltar à realidade, por mais duro que seja o chão.
porra, vi um filme, tá soberana a descrição, envolta em confusão;
sensacional pacaralho, me amarrei.
É brodão, que baladas narrativas você anda frequentando e o que você tá tomando? hehheheheh.
Falei só pela piada: o universo é completamente Victão. E várias figuras bacanas, viu. É muito loco que você já descreve coisas como "o semblante industrial". Isso é total abstrato, mas dá pra entender perfeitamente. É como dizer "o olhar sério de Darth Vader". Que olhar!? Mas ao mesmo tempo, tá ali.
Sabe-se que você tá num eros-grau narrativo, e isso há algum tempo, mas dá pra sentir evolução, como o Heyk falou. E isso é lóki.
Namaste.
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