Nu, Babeloque calçou os pés-de-pato e saltou da nuvem. Quando saltava, o corpo cedia à gravidade num primeiro momento, mas se estabilizava conforme as pernas o impulsionavam. Nadava entre as nuvens do pôr do sol, de dorsos dourados e barrigas escuras, coloridas. Abria os braços e sentia a leve umidade do ar, numa brisa suave. Era um navegador tranquilo, de modos suaves e sem pressa. Nadou, navegou mais, por um longo tempo, e começou a subir enquanto o sol descia. Logo o céu se afundou num púrpura escuro, e o luar mudou o espírito do mundo.
Vagando sem intenções acima das nebulosas chegou à casa de Vis, o grande peixe. Sobre uma nuvem em movimento havia apenas um arco grotesco - a porta da casa. Entrou. No enorme rol, Vis examinava uma falcusa. O corpo do peixe era grande e majestoso, e suas escamas antigas cintilavam como safiras. A falcusa deitava-se no algodão - um barco incomum, cuja vela corta o ar na diagonal pra velejar com eficácia.
- A engenharia é tão simples. Por que os peixes não a compreendem?
- A ciência vem do erro humano, Vis. Os peixes não erram.
- Besteira. Como vai sua poesia?
- Expansiva.
- Sei.
- Inscrevi a última numa nuvem enorme. Uma ciranda das propriedades imagéticas da água. O principal aspecto...
- Você insiste em formar imagens com palavras.
Babeloque insistiu:
- Sim, o principal aspecto da água é o...
- Por que não usa imagens pra formar imagens? Ou melhor: por que não usa a vantagem que a palavra tem sobre a imagem, explorando naquela todo aspecto que esta não consegue alcançar?
- Mas eu uso, não é claro?
- Não pra mim. Qual a vantagem de expressar uma imagem num texto?
- Não sei se é uma vantagem, mas a imagem se torna infinita, ganha mil facetas, já que cada um vê a seu modo.
- Bobagem, Babeloque. A imagem se limita a uma só imagem. O que há em quantidade no seu exemplo são observadores. A palavra assume uma só forma, gera apenas uma imagem em cada um. E aí as impressões pouco se conversam. É dessa falta de conexão e de unidade que surge um mistério que enobrece a poesia imagética. A ilusão estética surge da confusão.
- Não, Vis! Você chama a pluralidade de confusão! Vou voltar alguns passos, veja bem. A palavra é apenas a ferramenta unificadora da impressão imagética que quero causar. Da mesma forma, quando nos deparamos com uma imagem, ela é a base unificadora de todo o entendimento que temos dela (já que o nosso entendimento se constrói com palavras). Assim, seja pintura ou poesia, há um signo pronto a ser sentido pela experiência do contemplador. Ele parte dessa experiência e forma um universo de julgamento racional, que mistura as sensações com a lógica do seu próprio repertório, e cria um entendimento. O único ponto unificador dessa sucessão de eventos é a obra em si. A arte só acontece quando é contemplada. Assim, como eu disse antes, a imagem se torna infinita. Da mesma forma, se eu pinto um quadro, a palavra se torna infinita.
- Então a palavra limita a palavra, e a imagem limita a imagem. Certo?
Nuvens nunca param de dançar.
Perdão
-
Quisera ver-te em suplício
mas logo me dou conta
– e, de tudo, logo isso! –
que tu és eu.
Sou eu quem me amedronta.
Quisera acusar-te de tudo...
8 comentários:
Estou contemplando seu texto... Bela obra
No sense... a princípio. Mas depois vai tomando ares imponentes, empolados e graves de ensaio teórico. Mas não cai das nuvens. Tem muito mais aí. Vou degustar mais, digerir, metabolizar, sonhar...
ahusaheusheauseu
cara... parou a madrugada.
caraleo, victao. muito bom! curti muito o ritmo e a forma como o conto começa. a forma meio psicodelica-abstrata pra falar de coisas caótico-rotineiras, como já é de seu costume, tambem realmente me agrada.
vejo a identidade de um escritor sendo formada sucessivamente. tem talento meu caro. torço pra te ver nas paginas de um anuario qualquer de literatura.
grande abraço!
Nossa, totalmente concordo com o Leo aqui a acima: vc é um escritor com identidade, toda vez que começo a ler um texto seu, eu já penso "tsk, tsk...victão..." hahaha quando ele pulou da nuvem foi isso, já lembrei de como era sua vibe.
Enfim, curti, e o diálogo ideológico e corriqueiro nesse cenário irreal é mt bom tb! Parece uma daquelas conversas de bar!
Me lembrou tb que mtas vezes eu fico tendo conversas imaginárias com as pessoas na minha cabeça - pessoas reais, que eu conheço. Aí jogo um assunto e ela me responde, e vamos tecenndo toda uma discussão que eu provavelmente nunca vou levantar, pq afinal ela já foi discutida, em minha cabeça...
hehe
anyway, goog job!
Definitivamente... é pra ser lido mais de uma vez. Porque "as nuvens nunca param de dançar".
"A insustentável leveza" de um conteúdo imaginado precisa ser simbolizado para que seja expresso. E precisa ser expresso para tornar-se realidade. Essa transição é tanto mais complexa quanto mais sublime a idéia e mais concreta a realidade. Mas a criança nasceu robusta e passa muito bem!
Cabe a nós, leitores, saborear e não apenas tentar engolir.
bom, é uma putaria esse texto.
nenhum dos dois discute preferência, coloca ponto de vista tentando mostra através de argumentos objetivos o quão melhor tal ou tal técnica e postura sao mais interessantes.
Quando o pano de fundo é o do suporte.
O poeta pode ter como ferramenta e suporte a palavra e o papel, fazendo imagens com isso e só. E para isso basta que ele não queira se expressar em outro meio. Que não queria usar imagens, mas criá-las atraves de signos representativos de imagens, palavras, que não servem só para isso.
Agora se a imagem limita a imagem e a palavra limita a palavra, isso é possível. O espaço é concorrente.
Rapeize!
O bom é que na xepa dos comentários a gente fica mais livre pra falar sobre a periferia do texto.
Victone, o ambiente dos nadadores no céu é muito gostoso mano. Fica um gostinho de quero mais. Pra contribuir com o eu experimento, vale explorar ele em outros textos, nesse misto narrativo/temático.
E fica um elogio bem grande para o começo do diálogo, as quatro primeiras falas. Ficou autêntico, e a gente não entende muito bem o porquê e como, tem aquela amarração Tarantino.
E vai que vai, meu filho. Isso aqui é ensaio se fingindo de história.
Aquele embrace.
Postar um comentário