1.9.09

O Voo de Babeloque

Nu, Babeloque calçou os pés-de-pato e saltou da nuvem. Quando saltava, o corpo cedia à gravidade num primeiro momento, mas se estabilizava conforme as pernas o impulsionavam. Nadava entre as nuvens do pôr do sol, de dorsos dourados e barrigas escuras, coloridas. Abria os braços e sentia a leve umidade do ar, numa brisa suave. Era um navegador tranquilo, de modos suaves e sem pressa. Nadou, navegou mais, por um longo tempo, e começou a subir enquanto o sol descia. Logo o céu se afundou num púrpura escuro, e o luar mudou o espírito do mundo.

Vagando sem intenções acima das nebulosas chegou à casa de Vis, o grande peixe. Sobre uma nuvem em movimento havia apenas um arco grotesco - a porta da casa. Entrou. No enorme rol, Vis examinava uma falcusa. O corpo do peixe era grande e majestoso, e suas escamas antigas cintilavam como safiras. A falcusa deitava-se no algodão - um barco incomum, cuja vela corta o ar na diagonal pra velejar com eficácia.

- A engenharia é tão simples. Por que os peixes não a compreendem?

- A ciência vem do erro humano, Vis. Os peixes não erram.

- Besteira. Como vai sua poesia?

- Expansiva.

- Sei.

- Inscrevi a última numa nuvem enorme. Uma ciranda das propriedades imagéticas da água. O principal aspecto...

- Você insiste em formar imagens com palavras.

Babeloque insistiu:

- Sim, o principal aspecto da água é o...

- Por que não usa imagens pra formar imagens? Ou melhor: por que não usa a vantagem que a palavra tem sobre a imagem, explorando naquela todo aspecto que esta não consegue alcançar?

- Mas eu uso, não é claro?

- Não pra mim. Qual a vantagem de expressar uma imagem num texto?

- Não sei se é uma vantagem, mas a imagem se torna infinita, ganha mil facetas, já que cada um vê a seu modo.

- Bobagem, Babeloque. A imagem se limita a uma só imagem. O que há em quantidade no seu exemplo são observadores. A palavra assume uma só forma, gera apenas uma imagem em cada um. E aí as impressões pouco se conversam. É dessa falta de conexão e de unidade que surge um mistério que enobrece a poesia imagética. A ilusão estética surge da confusão.

- Não, Vis! Você chama a pluralidade de confusão! Vou voltar alguns passos, veja bem. A palavra é apenas a ferramenta unificadora da impressão imagética que quero causar. Da mesma forma, quando nos deparamos com uma imagem, ela é a base unificadora de todo o entendimento que temos dela (já que o nosso entendimento se constrói com palavras). Assim, seja pintura ou poesia, há um signo pronto a ser sentido pela experiência do contemplador. Ele parte dessa experiência e forma um universo de julgamento racional, que mistura as sensações com a lógica do seu próprio repertório, e cria um entendimento. O único ponto unificador dessa sucessão de eventos é a obra em si. A arte só acontece quando é contemplada. Assim, como eu disse antes, a imagem se torna infinita. Da mesma forma, se eu pinto um quadro, a palavra se torna infinita.

- Então a palavra limita a palavra, e a imagem limita a imagem. Certo?

Nuvens nunca param de dançar.

8 comentários:

Pedro Gama disse...

Estou contemplando seu texto... Bela obra

Lírica disse...

No sense... a princípio. Mas depois vai tomando ares imponentes, empolados e graves de ensaio teórico. Mas não cai das nuvens. Tem muito mais aí. Vou degustar mais, digerir, metabolizar, sonhar...

Tulio Malaspina disse...

ahusaheusheauseu
cara... parou a madrugada.

Leo Curcino disse...

caraleo, victao. muito bom! curti muito o ritmo e a forma como o conto começa. a forma meio psicodelica-abstrata pra falar de coisas caótico-rotineiras, como já é de seu costume, tambem realmente me agrada.

vejo a identidade de um escritor sendo formada sucessivamente. tem talento meu caro. torço pra te ver nas paginas de um anuario qualquer de literatura.

grande abraço!

Carina disse...

Nossa, totalmente concordo com o Leo aqui a acima: vc é um escritor com identidade, toda vez que começo a ler um texto seu, eu já penso "tsk, tsk...victão..." hahaha quando ele pulou da nuvem foi isso, já lembrei de como era sua vibe.

Enfim, curti, e o diálogo ideológico e corriqueiro nesse cenário irreal é mt bom tb! Parece uma daquelas conversas de bar!

Me lembrou tb que mtas vezes eu fico tendo conversas imaginárias com as pessoas na minha cabeça - pessoas reais, que eu conheço. Aí jogo um assunto e ela me responde, e vamos tecenndo toda uma discussão que eu provavelmente nunca vou levantar, pq afinal ela já foi discutida, em minha cabeça...

hehe

anyway, goog job!

Lírica disse...

Definitivamente... é pra ser lido mais de uma vez. Porque "as nuvens nunca param de dançar".

"A insustentável leveza" de um conteúdo imaginado precisa ser simbolizado para que seja expresso. E precisa ser expresso para tornar-se realidade. Essa transição é tanto mais complexa quanto mais sublime a idéia e mais concreta a realidade. Mas a criança nasceu robusta e passa muito bem!

Cabe a nós, leitores, saborear e não apenas tentar engolir.

Heyk disse...

bom, é uma putaria esse texto.

nenhum dos dois discute preferência, coloca ponto de vista tentando mostra através de argumentos objetivos o quão melhor tal ou tal técnica e postura sao mais interessantes.
Quando o pano de fundo é o do suporte.
O poeta pode ter como ferramenta e suporte a palavra e o papel, fazendo imagens com isso e só. E para isso basta que ele não queira se expressar em outro meio. Que não queria usar imagens, mas criá-las atraves de signos representativos de imagens, palavras, que não servem só para isso.
Agora se a imagem limita a imagem e a palavra limita a palavra, isso é possível. O espaço é concorrente.

Chammé disse...

Rapeize!
O bom é que na xepa dos comentários a gente fica mais livre pra falar sobre a periferia do texto.
Victone, o ambiente dos nadadores no céu é muito gostoso mano. Fica um gostinho de quero mais. Pra contribuir com o eu experimento, vale explorar ele em outros textos, nesse misto narrativo/temático.
E fica um elogio bem grande para o começo do diálogo, as quatro primeiras falas. Ficou autêntico, e a gente não entende muito bem o porquê e como, tem aquela amarração Tarantino.

E vai que vai, meu filho. Isso aqui é ensaio se fingindo de história.

Aquele embrace.