9.3.09

Protociência

Não era nenhum compromisso esperado com orgulho, era um “finalmente”. O interfone me avisava a chegada do encanador de camiseta, bermudão, chinelo e nenhum material na mão. A primeira vista, pensei se eu precisava mesmo dele para fazer aquele serviço. Rumamos para o apartamento da japonesa, que nos guiou em um caminho de gatinhos brancos, porquinhos brancos e texturinhas de flores na parede até o seu banheiro, que sofria com o vazamento do meu. O encanador forrou o banheiro de jornal e cortou o teto com um serrote fino (que, aliás, eu emprestei). Fiquei como o assistente ranzinza dele, buscando materiais ou fazendo favores enquanto observava. O engraçado é que ele fez um buraco pequeno no teto de gesso, que só cabia a mão dele, e tateando sem enxergar nada, me disse: “a água vem do seu vaso”.

Por incrível que pareça, começava a me interessar por aquilo. Ele nem “viu” o vazamento e já tinha idéia de como acontecia. Fomos para o meu apartamento e ele seguiu com a demonstração: tirou o vaso do lugar e me convidou para assistir à lajota quebrada. “Olha, cê tá vendo que quando eu seco aqui a água vem de lá pra cá, né?”, e do box para pia, aquele pequeno pedaço de chão exposto inundava lentamente. “Quer dizer que a água vem do chuveiro, infiltra no chão, e desce por fora do cano do vaso até o apartamento da vizinha”. Naquele momento comecei uma reunião dentro da minha cabeça – aquela conclusão era muito, perto das evidências. A dedução do caminho tortuoso do líquido foi feita em cima de duas constatações distantes, interligadas em lógica. Se for pensar, não era nem muito distante do que, sei lá, Rutherford usou para descobrir o modelo atômico. Isso mesmo: Rutherford nunca viu um átomo na vida, como todos, e sugeriu que ele parecia um sistema solar depois de bombardear uma lâmina de ouro com partículas alfa. E depois de alguns anos de estudo, é claro.

Estava convicto de que aquilo era ciência, e pior, desprezada. Enquanto meu trabalho era dizer groselha enfeitada no ouvido de muitos, o dele era de aumentar o saber hidráulico dos homens, ajoelhando em banheiros e lavabos. O que daria se ele fizesse uma faculdade de Encanador? Talvez dos 4 ou 5 anos de estudo, algumas matérias serviriam pra nada ou como curiosidade, outras para convencer os clientes com falas técnicas, e alguns aprendizados seriam realmente pertinentes. Sem contar que o mesmo trabalho que ele aprendeu inteiro na prática valeria três ou quatro vezes mais. O saber enobrece. Pelo menos o do diploma.

Ainda sim, acreditava naquela ciência, paga com 30$ e um “até logo” na porta do elevador. A idéia dormiu na minha cabeça naquela tarde e acordou dois dias depois, na janta, com a pergunta da minha irmã e a TV ligada ao lado:

- Cê viu no que deu o conserto do Zito?
- O quê?
- A japonesa reclamou que tá vazando tudo de novo
- Ah Jô, mas nem Rutherford acertou de primeira.

Foi um jantar silencioso sob a luz de raios catódicos.

5 comentários:

Victor Meira disse...

Hahahaha, o desfecho é sensacional. Esse texto é ótimo. É texto-chammé, galera, naturalis do menini.

Chammé, agradabilíssimo, nego. As comparações foram guiadas com sobriedade e de um jeito divertido. O fim me provocou uma gargalhada gostosa aqui atrás do monitor, cê viu.

Abrazzo virtuélo.

Tulio Malaspina disse...

Chaminééééé!!!

Cara, se eu te falar que esse texto foi a minha realidade nessa ultima semana voce não acredita! Passei exatamente por isso, só faltou a sacada que o interlocutor teve, que alias foi sensacional!

Gosto bastante do texto, tá redondinho redondinho!

abraçosss!

Guto Leite disse...

Crônica de primeríssima linha, prezado! A conexão entre gravidade e o contexto cotidiano se dá de maneira sutil, mas marcada. Gostei muito! Grande abraço

Lírica disse...

Hahahaha. A diferença, além do diploma, da perda de tempo e de muita burocracia, é que o encanador a gente pode xingar. Afinal, quem ele é? Nem ele mesmo se respeita! Imagine: ganhar a vida aos pés do vasos sanitários! Cheirando esgotos!
Mas o mais legal desse texto, pra mim, é que ele me lembrou que, mesmo diante de seres que socialmente desprezamos, às vezes precisamos estar silentes, submissos e crédulos.

Carina disse...

hahahahaha

só vc, Pedro Chamime, só vc!