1.2.09

O Microondas

Preciso te contar o que aconteceu hoje à tarde. Eu andava pela rua Yonge, já perto do cruzamento com a Bloor. Mas a história toda carece de antecedentes e, como não conheço algumas das causas centrais do enredo, volto depois pra contar o que preciso contar.

* * *

Não me lembro muito bem dos nomes, mas podemos dizer que o gatinho siamês se chamava Mingus (este narrador prefere não conversar sobre o motivo dos nomes no intervalo para o café), e à dona do felino darei o nome de "Maria", por uma questão de conveniência. Maria podia ser qualquer coisa nesse contexto de cadarço desamarrado, mas às vinte e três e quarenta dessa sexta-feira ela era desenhista - e complemento: uma das melhores de Toronto.

Sua agenda e compromissos exigiram uma série de escolhas difíceis ao longo da semana, que a obrigaram a dormir em horários infreqüentes, sem qualquer estabilidade ou previsão. Por exemplo, vinha a muitas horas seguidas sem dormir até quinta pela manhã, quando finalmente conseguiu uma brecha pra tirar uma soneca - pareceu-lhe um dia inexistente. Enfim, finalizava nessa sexta-feira uma série de cinqüenta e sete desenhos feitos para uma exposição cujo tema era uma homenagem ao centenário do músico Ron Carter. Havia grande variedade técnica entre as peças de seu trabalho: xilo e litogravuras, aquarelas e nanquins, recortes, ilustrações digitais e três telas grandes pintadas a óleo; um trabalho que lhe custara meses de muita disciplina, uma vez que Maria teve de se dedicar a técnicas que não costumava dominar, como o manuseio do pincel de nanquim e a boa composição em tons variantes da matiz. Seu apartamento parecia uma instalação, com cavaletes, telas, inúmeros papeis, estudos e esboços espalhados, moldes de pedra e madeira, tubos e vidros de tintas de todas as cores, manchas nas paredes e no carpete, e uma rodela quase funérea em volta dos olhos notívagos.

Revisou todo o material e, esgotada, entregou-se à cama, lambuzada como estava de tinta. O resto - confesso, sou um narrador muito pudico, e só de levar esse conto até aqui já fez minha cabeça fritar, - o resto eu não vou contar. Não posso, não consigo, me perdoem. Pra vocês que não conhecem tudo, que não presenciaram cada segundo após as nove e vinte e sete da manhã de sábado - meu deus - pra vocês a vida sorri, a vida é bonita. Preciso me retirar. Sinceras escusas.

* * *

Primeiro o estrondo, pra depois realizar que um objeto a favor da gravidade quase me meteu estirado no chão: sei lá de que andar caiu um microondas branco com um baque terrível - uma nota morrediça - à minha frente na calçada, às catorze e setenta e dois da tarde, na rua Yonge. Por um impulso (que depois me faria crer que não somos donos dos nossos atos) fui até o objeto e escancarei sua portinhola. Não me choquei quando bati os olhos, no primeiro momento. Na verdade, fiquei um tanto confuso: parecia um casaco escuro, embolado. Me aproximei para um exame mais curioso e - me custa relatar - percebi que era um animalzinho queimado, encolhido; um gatinho. Cheirava fortemente e havia sangue cobrindo seu corpo miúdo, atrofiado. Percebi que ainda respirava - um levíssimo pulsar no dorso. Abriu a pálpebra do olho esquerdo - a do direito havia fundido e grudado, carne com carne - e da cavidade ótica irrompeu uma massa branca embebida de sangue. Finalmente, parou de viver, pouquinho tempo depois de tentar um último vislumbre do mundo. Havia uma multidão em volta e, quando notei, defensores da ordem pública me afastaram do local com algumas perguntas às quais respondi negativamente, mecanicamente.

Já disse que desconheço quaisquer causas do acontecimento. Assim, atribuí o fato ao acaso, que é como todo incidente deve ser interpretado quando o narrador se protege, em nome do pudor, dos riscos que o vento e a doidice podem causar.

6 comentários:

Anônimo disse...

Que terá aprontado, o bichano?????
Mas vc continua "fazendo arte"!
Larica

Leo Curcino disse...

a arte de criar efeitos sem causa! (:

Anônimo disse...

Ah, meu caro. Gosto desta linha imposta pelo narrados, que parece respeito com tom de impessoalidade!

Li faz pouco "O sonho de um homem ridículo", e "A Dócil" do Dosta, curtinhos; são cheios deste tom gostoso de narração bem feita.

tomazmusso disse...

Mano, fiquei mó tempão querendo comentar esse texto, ou melhor, chegar numa palavreação sobre ele...e naum deu, mas eu gostei, é como se fosse um resumo de um universo onde o espectador tem acesso só a alguns fatos, e por isso é intrigante... boa!

EduBarreto disse...

De novo, ótima narração Vitão!

Você escolhe muito bem as palavras, e cria uma expectativa gostosa nos seus textos.

filipealbergoni disse...

As vezes o que fica na minha cabeça é o que o lvou a escrever isso e não a história em si! Por isso queria saber o que se passou na sua cabeça!!! hehe Não precisa me falar pq pra mim a maior graça é isso!!! auhauha
Abraços...