18.12.07

Divã em Branco

Eu desconfortável no divã e a máquina me analisando.

- Pode se abrir, amigo.

É bem o que eu queria: pegar um daqueles aparelhos e rasgar do umbigo até o meu pescoço numa espécie de haraquiri contemporâneo.

- Doutor, a coisa hoje é meio absurda.

Amputo meu braço esquerdo se ele não pensou “lá vem a ladainha”.

- Absurda? Por que absurda? – atencioso.
- Vê só, doutor. Eu acordo, ligo o computador, escovo os dentes, como e tudo o mais. Meu primeiro encontro social do dia acontece dentro de casa.

Pausa.

- Isso não tá certo, doutor.
- Por que você acha isso? – com aquele tom sintético de preocupação.
- Antigamente eu acordava e era só eu mesmo, eu e eu, até botar o pé fora de casa, entendeu? Aí eu saía e encontrava as pessoas, fazia as coisas.
- Certo. Mas me diga, o que te incomoda? – fingindo aquela burrice que faz a gente dar respostar pras próprias perguntas.
- Pô, o que acontece é que agora é ao contrário. Eu acordo, falo com as pessoas pelo computador, na rede. Aí eu saio de casa, não falo com ninguém. Digo, não encontro ninguém, mas tá todo mundo ali, sabe? Claro, se falo com alguém não é com uma pessoa, mas com um funcionário. E funcionário só é pessoa se você o tira dessa condição. E isso não acontece, cê sabe.

Outra.

- Ah, claro, isso quando o funcionário não é uma máquina, como os psicólogos, por assim dizer. – provoquei com inocência de cara amarela.
- Que quer dizer com isso? – atravessou, com tranqüilidade programada.

Sacanagem mexer com o ego de uma máquina. Isso deve dar cadeia.

- Nada não, doutor, nada não.
- Então me diga, você já tentou mudar um pouquinho as coisas?
- Mudar como, doutor?

A máquina esboçou um riso de satisfação. Daqueles de quem já tem a resposta, mas quer que você chegue nela. Puta mentira.

- Digo, fazer o que?

Um minuto de silêncio incômodo.

- Eu nem terminei, vai vendo. Como eu ia dizendo, passo o dia fora de casa como se estivesse sozinho dentro de casa. No fim, volto pra casa e encontro todo mundo de novo na rede.
- Hmm, veja só. Você mesmo não parece ver problema nessa lógica. Ao meu ver, é uma troca meramente horária. Os costumes estão dispostos em outra ordem, mas continuam os mesmos. Você concorda?
- Sei não, doutor. Supostamente minha casa teria que ser um lugar privado. Mas do jeito que as coisas acontecem, eu sou integralmente uma pessoa pública.
- Mas por que isso te incomoda? – novamente.
- Porque dentro e fora de casa eu vivo um constante encontro social. Não dá pra se privar disso.
- Mas o que você quer, em ultima instância? – com o riso de boca fechada, fronte curvada e os olhos em mim.
- Sei lá, queria liberdade pra ficar a sós mais tempo. E não ter encontro social com uma máquina fazendo barreira, sabe?

O puto me fez dar uma resposta. Chegar nela sozinho. E eu sei que aquilo era pedir demais, ainda mais queimando a língua com aquela palavrinha ousada.

O relógio ditou o fim da consulta.

- Volte semana que vem e nós retomamos. – disse antes de reiniciar o sistema para o próximo paciente.

Foi a décima consulta.

3 comentários:

Alben disse...

Meus sinceros cumprimentos Victz ;D

Esse teu texto foi muito nostálgico pra mim.

Não sei se é mal de todo interiorano que sai pra uma cidade bem maior e acaba se sentindo assim ou não.

Me senti de volta na kitchnet em Campinas há dois anos atrás, levando minha vida de estudante de publicidade.


Realmente bom, realmente humano.
Parabéns

Anônimo disse...

gostei legal.

outro!

Heyk disse...

Ó, eu falo.

Legal. Coluna de jornal. Valeu Veríssimo.

Falando sério agora, o que mais gostei, Além de ser um texto dinâmico, inteligente e tal, foi das descriçoes pós-fala que o victor pôs. Ótimas. Fiquei realmente feliz.

Não é um achado. Mas é um bom pararênteses nesse processo de pós-humanização nosso.

O jair Ferreira dos Santos falou pra gente (eu e Sergio Cohn) que a ficção científica brasileira não floresceu porque não temos contato tão abrupto e devastante com as próteses informacionais (leia-se tecnologias de entretenimento) como o primeiro mundo tem. Eu achei legal essa conversa e acho que tem a ver com o caso e com a coluna do victor (só um pouquinho. hehehe).

O que vocês acham?

Ah, e parabéns Victão, viva a flexibilidade.