1.11.10

Encuentro

Liguei e mandei um email pra mostrar o desenho que eu havia feito. Dias depois ele estava pelo Brasil, e de alguma forma consegui marcar um café sexta à noite com ele. O encontro foi breve, cheguei uma meia hora antes. Ele veio com a namorada, uma moça adorável, mexicanamente charmosa, mais nova que ele. Eu estava muito excitado, o admirava muito e nenhum artifício racional era capaz de conter esse juvenil irremediável e transparente.

- It's amazing that you're here, man.

A energia da cafeteria caiu e tudo ficou escuro. As vozes ascendendo em reboliço divertiam-se com o susto, havia muitos jovens ali aquela noite. Não durou quinze segundos pra que a energia voltasse, mas quando foi iluminado, o ambiente estava vazio. Não havia nenhum cliente, ninguém atrás do balcão. Não havia carros lá fora. O único ruído vinha da cozinha e era agudo, como que pressurizado. Onde ele estava? Meu terror era confuso. Onde estavam as pessoas? Me levantei e fui até lá pra constatar que o barulho vinha de uma máquina de café soltando vapor de limpeza. Procurei o botão, mas antes de encontrá-lo bati o olho num desenho sobre o fogão: era o rascunho original da ilustração que eu havia feito pra ele, queimando do centro às extremidades. Eu não tinha tanto apego pelos meus próprios originais, mas me afligia tentar entender como o desenho viera parar ali, e quem o queimara. Talvez ele o tivesse queimado. O ruído de vapor parou sozinho. Então senti duas mãos me tamparem os olhos (como as crianças fazem) sem a pronúncia da pergunta que entrega o jogo. Tentei me desfazer, mas o enlace era quase como uma gravata e eu tive que lutar pra me soltar. Me curvei pra tentar lançá-lo e acabei esbarrando na máquina de expresso. Café frio caiu por toda minha calça e a cafeteira se espatifou no chão, puxando a tomada enroscada na prateleira das xícaras, que também voaram pelo ar junto com o café e o corpo do meu agressor. Quando recobrei a visão o procurei; não havia ninguém, mais uma vez. Vi apenas a cozinha em catástrofe. O vapor de limpeza quebrou novamente o silêncio e percebi que em cima do fogão estava o rascunho original do meu desenho. As caixas de som soaram com a minha voz:

- It's amazing that you're here, man.

Girei, procurei alguma coisa, o estranho, tudo, esperei tudo, corri até a quina das paredes mais próximas e me encolhi acocorado, ciente de que qualquer evento poderia acontecer ao termo de dois, nenhum, dez segundos ou anos ou milênios ou unidades divinas do tempo. Um elefante poderia sentar-se à minha frente, me exigir o aluguel, um café, a razão, um samba com cara de salsa como o que o Zezé tinha feito e que a gente chamava de Samba do Zezé, ou nada, absolutamente nada, o que seria terrivelmente mais assustador. Notei, por acaso (na verdade por olhar o chão enquanto minha cabeça se desfazia em tempestade), que na quina a gente não faz sombra; que essa nossa escuridão não está conosco, ou pelo menos se esconde atrás, debaixo da gente, e a gente enxerga a sombra de tudo o mais que há no lugar como um juiz, como o juiz rei do planeta.

- I-i-i-idz a-a-am-m-ma-a-az-zin t-tyou-u-u-ur-r-rh-he-e-e-er-r-re-e, m-m-m-ma-a-a-an-n-n.

A frase soou grave e tão lenta, vinda da garganta cancerígena do diabo, mas tão lenta que se arrebentava em fragmentos, em tons de metal, de máquina, de máquina de café e xícaras e overdrive, fundida com o vapor de limpeza, lleennttaa, torturando, me fazendo levar inutilmente as mãos aos ouvidos como se ouvessem dois buracos nas palmas, chagas nunca cicatrizadas, arrombadas, enormes. O som parou junto com o vapor e a treva sonora se derramou novamente na cozinha.

Fiquei esperando o momento da recomposição. O momento em que eu veria tudo retornar lentamente, como o m-m-ma-a-a-a-an-n-n-n, as xícaras flutuando e se reunindo, talvez mantendo algum resquício memorial do pesadelo (uma redondilha de café frio), a máquina se restaurando com todo o seu conteúdo inútil, destinado a ser jogado no ralo, o agressor voltando a nunca ter existido e meu desenho voltando a nunca ter estado na cozinha daquele café. Num piscar de olhos eu me perceber sentado à frente dele, voltando por um tunel ainda a tempo de escutar as últimas sílabas tyou're here man e ve-lo sorrir pra mim e para a namorada.

Fiquei esperando. O vapor de limpeza fez que voltaria a gritar, mas engasgou logo em seguida por falta de água. Zin t-tyou're here man, e vi seu sorriso muito antes do que eu esperava.

Um comentário:

Anônimo disse...

Perfect crime, boy!!! cinema na veia!!! abraços & assaltos for yú, du Rod Britto.