O médico disse a Henrique que quanto menos luz houvesse no quarto, melhor seria seu sono. Um gênio.
- Nosso olho é sensível mesmo quando tá fechado. Se o cérebro encontra luz durante a noite, ele automaticamente passa a ter que lidar com aquela informação. Nem que seja pra negá-la.
Seus gestos não disfarçavam um tipo de excitação neurótica na explicação. Quando terminou, deixou flutuar um hiato silencioso enquanto alguma droga era prescrita na folha verde. Henrique ficou comparando o esforço de negação da luz com a educação corporal que nos protege, desde pequenos, de mijar na cama. Tinha um quadro atrás do médico onde Jesus aparecia iluminado, alentando um doutor de cenho muito carregado e norueguês. Parecia que ele tava puto com Jesus, de certa forma. O médico de Henrique era japonês. Jesus talvez mijasse na cama por causa do halo que invariavelmente irradiava de sua face nos quadros. Não, espera... tinha misturado as coisas. Resolveu romper:
- Era pra parecer que Jesus tá acalmando, confortando o doutor, mas parece que ele tá de saco cheio, tipo: 'po, esse Jesus de novo?'...
O médico japones olhou pro quadro e deu um risinho de simpatia, sem a certeza de que tinha entendido a piada ou inseguro, meio deslocado pela espontaneidade do comentário. Era um desvio, um desvio.
Ao sair do consultório viu um cara colando lambe-lambes nos postes - "Vote Dilma 45". A cabeça dela também emanava luz, como a de Jesus. O cara passou por Henrique rindo torto de um jeito maneiro, como se estendesse a mão da cumplicidade pelos olhos.
Henrique sentiu um tremendo sono às três e meia do sábado. Achou que estava atrasado pra alguma coisa.
Perdão
-
Quisera ver-te em suplício
mas logo me dou conta
– e, de tudo, logo isso! –
que tu és eu.
Sou eu quem me amedronta.
Quisera acusar-te de tudo...
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