25.3.10

Sexta-feira Lúcia

.................................................................pintura de Arshile Gorky

Estou aqui te observando enquanto você caminha pela orla com as mãos nos bolsos, desenhando percursos sobre as linhas da calçada. Vejo-te brincando com as chaves pra aliviar as mãos tensas, sorrindo sem graça pro vizinho que te cumprimenta. Então você pára de repente, indecisa entre água de coco e refrigerante, e escolhe o mais barato. Guarda o troco e senta-se com os olhos baixos diante do orelhão, pensando se deve ou não ligar pra ele. Mas como sempre você pensa demais, acha que está sendo inconveniente, insistente, e prefere desistir, sem saber o quanto ele espera pelo seu telefonema.

Seus dedos bailam no ar e você sente uma tristeza fria como estas noites de agosto. Dói tanto, mas não há pranto, você já não sabe chorar, as lágrimas endureceram e ficaram cravadas no fundo d’alma, e como pesam. Ergue o corpo e segue na caminhada. Não sabe se volta pra casa ou continua andando, não sabe. Estanca o movimento, sente o mundo girando e tem de vontade de gritar, mas não grita, silencia e volta ao lar. Eu te sigo. Ao chegar os cães lhe fazem festa e você os enxota aos pontapés, sente raiva de si, sente demasiadamente. Curva-se e os acaricia numa tentativa de desculpas, e eles as aceitam. Entra no quarto, tira as roupas e as arremessa sobre a cama, deita-se nua no chão frio, sem saber o que fazer desta noite e assim fica, imóvel por um longo tempo.

Na sua memória passeiam as lembranças de todos aqueles que pareciam te olhar de uma maneira diferente, e realmente alguns deles te olhavam. Mas você sempre se achando indesejável, sem-sal, embora no fundo desconfiasse que as outras não tinham um terço do seu valor. Você tinha um mundo no peito, mas parecia não haver ninguém para ouvi-la. De uma daquelas tardes distantes, ressurge a imagem do cara que esbarrou contigo na saída do cinema. Seus olhares se encontraram e naquele segundo vocês pareciam descortinados um para o outro, mas as palavras não saíram, e ele se perdeu no meio da multidão. Desde então aquele rosto nunca mais se apagou da sua lembrança. E vieram outros verões, alguns encontros, bem menos que desencontros, e a terrível sensação do tempo que passou sem ser vivido.

Na buzina de um automóvel você desperta das lembranças e volta ao presente. Observa a luz do poste que invade o quarto e pousa sutil no bico do seu seio, decide levantar-se e diante do espelho solta um riso discreto. É hora de voltar à vida. Escolhe o seu vestido mais bonito e sai mais uma vez à procura de uma noite diferente.

6 comentários:

Philippe Bacana disse...

achei muito bom! além de tudo, me identifico.
Talvez muita gente se identifique com essa busca incessante por uma noite diferente, por situações novas, pelo inusitado...
bem assim, sem lenço, sem documento.
obrigado por postar o texto na sexta-feira! não podia ser melhor.
abraço!

Heyk disse...

impressionante, william. Sério.
olha, li o post ouvindo isso aqui, pra mim encaixou tanto: www.myspace.com/oborro, a musica chama 1995 (v3).
Cara, me pegou, como pega aquele conto do vinicius, aquele dos cachorros, sabe? por aí. E isso sem ter nada de realismo fantástico nele, pensei em mim, na caroll, em um monte de vezes que eu cheguei assim em casa, sabe? No meu quarto tbm entra a luz do poste, e serve de luminária quando quero ler sem acender a luz.
Foi muito legal isso.

Anônimo disse...

curti muito, tudo.

Rachel Souza disse...

Bonito! Para além da poética da personagem, senti um retrato da liquidez contemporânea e suas questões.

Leo Curcino disse...

simplesmente lindo, isso, cara. parabéns. adorei de verdade. li 2 vezes esse conto.

Isaac Frederico disse...

muito dinamismo, muito sentimento; o trunfo é exatamente a identificação desse sentimento que, de uma forma ou de outra, mais intenso ou menos intenso, é comum a todos.
fera esse conto !