Na rua de papel encerado eu andava de mãos dadas com a primeira existência (enorme, do tamanho do mundo). Íamos ao alfaiate - acho que era meu aniversário de dois anos - para tirar algumas medidas. O tema seria corrida de fórmula um, eu ia vestido com o macacão do Senna.
Aqui, no hoje, uma voz vulgar emergiu quando mudou de assunto.
- Caralho, ela tá demais hoje.
Era verdade. Aliás, ela é perfeita. Meto minha cabeça contra uma parede de aço: é simplesmente a menina que eu nunca vou ter, e que nem vale a pena tentar. Leví tentou retomar o que me explicava antes do comentário inevitável:
- Entendeu, mano?
Não.
- Entendi.
- Entendeu nada, cê tá mó brisa.
- Foi mal, tô mesmo.
- Deixa queto, te explico outra hora.
- Não não, fala aí, cara.
Leví fez boca torta, risonho. Insipirou e recomeçou:
- As profecias se cumprem. Toda formação social é guiada por uma única estrutura do imaginário, um só código mitológico. O apocalipse do mito-da-vez se cumpre inevitavelmente, e abarca todas as almas de sua sociedade. Os sobreviventes são os que não compreendem o mito corrente: seu imaginário se estrutura de outro modo, e ele simplesmente não entende a catástrofe final. Quem não entende a tragédia, sai ileso dela - simples assim. O que a gente toma por ignorância é, de fato, um outro tipo de formação estrutural do imaginário. Por isso esses sobreviventes...
O que Leví dizia era coisa fina, de primeira; mas não consegui evitar. Mergulhei novamente naquele delírio distraído.
Sua mão era grande, ela era jovem e andava comigo com passos que valiam por três ou quatro dos meus. A rua tinha manchas amareladas e um brilho curioso caminhando pela superfície do asfalto. Senti então qualquer coisa fria e molhada na mão solta; um engraxate imprimiu em mim a minha primeira lembrança. Jamais o disparate foi sequer lembrado por ele (que poder ele teve sobre a responsabilidade do ato?). Poeira do imaginário. Pra mim, a graxa na mão esquerda: o primeiro evento da minha consciência.
Hoje sou canhoto (um estigma sem pé nem cabeça).
- Entendeu?
- Entendi. Bem louco.
- Haha, da hora.
Perdão
-
Quisera ver-te em suplício
mas logo me dou conta
– e, de tudo, logo isso! –
que tu és eu.
Sou eu quem me amedronta.
Quisera acusar-te de tudo...
3 comentários:
o poder do mito.
você é um canastrão, Victor Meira.
Fica se auto-indulgindo em teorias esparsas sobre o mundo e seus acontecimentos. Aí depois cria esses cenários pra enfiá-las dentro e chamando isso de ficção...tsk tsk
seu merdao. eu gostei! ainda nao sei bem pq... mas gostei :D
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