Yan é um senhor polaco, grisalho e mora no apartamento 65. Vivia de um jeito despretensioso até demais: travava longas conversas com o porteiro, que chegavam a 1h30 de duração sobre jogo de quarta, enchente, cadê aquela moça?, custo benefício de carros populares, aquela do 73 lembra?, e outros. Durante as tardes andava até a faculdade na qual outrora lecionou, e por isso tinha entrada garantida, sem muitos fins de pesquisa, conversando em corredores com alunos e funcionários que não sabiam direito se ele era professor, ex-professor, ou o rapaz do almoxarifado. Yan até se lançava em aventuras, como na vez que pegou o Terminal Capelinha só por inclinação, mas isso era exceção. Era um senhor de aparência acolhedora, mesmo morando sozinho e não recebendo visitas.
Aliás, esse era o estranhamento de Bonifácio, o porteiro noturno. Sentia que era impossível falar sobre “a patroa” com Yan, isso porque ele devia escapar do assunto. Dona Judith, do 26, tinha só uma pena dele por intuição, que se revelava no olhar fundo e na inclinação da cabeça. A mocinha do xerox da faculdade não aparentava nenhum afeto, apesar de subconscientemente procurá-lo na sala dos professores. Na presença de Yan todos eram muito devotos, cada um ao seu modo, mas sua saída motivava desde a misericórdia até o mistério.
Yan até sabia disso, mas era uma discussão que preferiu nunca abrir. Vivia mesmo entre as lacunas do dia, e se alguém lhe afirmasse que ele vivia de fazer nada, ele riria concordando. No fundo, entendia que ver a moça do 73 pela janela era de uma profundidade tanta, que na primeira pergunta trincaria uma casca fina, e dela escorreria a explicação. Ele seria capaz de descrever esse tanto da experiência, mas como nunca tinha o feito, nunca mais o faria. Já estava ajoelhado na metade do caminho diário, e a trombose já fazia o seu papel veloz na vedação de qualquer oxigênio.
Foi um velório cheio. Indignação velada da mocinha do xerox, que jurava que Yan era um grande passivo do corpo docente, até ver aquele paradoxo. Talvez não fosse tão passivo quanto à tv que ela via todas as noites, ou quanto ao trânsito de Bonifácio até a portaria. Dona Judith rogava pelos cantos, sem pensar que o seu velório poderia ser composto de três pessoas, as únicas que frequentavam sua casa. Diferente da passividade, Yan apresentava, ao menos, um estilo modesto. Seu segredo era não transitar entre a solidão e o estar junto; na presença de qualquer indivíduo, ele estaria sempre participando.
Perdão
-
Quisera ver-te em suplício
mas logo me dou conta
– e, de tudo, logo isso! –
que tu és eu.
Sou eu quem me amedronta.
Quisera acusar-te de tudo...
5 comentários:
eu to cada vez mais ligado a essas prosas, que têm me dado uma fome de desenho imensa.
inda bem!
comecei a salivar com as coisas do Victão Meira; daí andei lendo mais as peripécias dentro dos contos da dona Rachel Souza e fui alimentando a piração. Agora seu trabalho ta fazendo parte desse processo individual-coletivo que ta rolando aqui!
olha só que coisa!
gostei do Yan. e vou tentar visitar dona Judith.
abraços!
De acordo com as técnicas publicitárias, poderíamos dizer que este foi um belo slice of life.
Interessante. Tem algumas coisas que não rolam, no entanto, confundem o ponto de vista... ou talvez você pretendia que elas fossem assim mesmo.
Enfim, exercitar o escrever é sempre bom, é sempre revigorante.
um grande abraço!
ps: ontem pensei em ti; voltei pra casa com cinco livros dentro de uma sacola plástica!
Negão! Texto diferente, brodi. Não sei porque, desde a primeira vez que o li aqui, tive a impressão de que ele saiu um pouco de uma linha que vinha sendo criada ao longo dos posts. Pra falar a verdade, o último conto também soou incomum. Acho que tá rolando cada vez mais uma intimidade com o formato. Os primeiros me soavam um pouco cheios de mesuras. Sinto, como leitor, que há mais conforto e liberdade agora.
Yan é um senhor polaco, que cria relações significativas e profundas, mas extremamente individuais. Sabe percorrer, contemplar e desfrutar de todo tipo de sujeito. Sabe ver valor sem esperar que o valor seja lhe dado por um esforço do outro. E disso, cria inúmeros laços fortes. Aliás, já que ri à pergunta que questiona sua ocupação diária, não me surpreende o fato de ter tempo pra construir essas amarras tão individuais, mesmo que em grande quantidade - como atesta o número de pessoas em seu enterro. Aproveita a velhice pra interagir com o mundo não em relações socialmente abrangentes (que têm por consequência a superficialidade), mas em relações individuais e profundas. Aliás, como professor que foi, deve ter se cansado das relações superficiais, como a que tinha com salas e mais salas de alunos.
Yan curte uma velhice invejável, eudaemônica, plena.
E como eu disse - e insisto -, acho que tem um quê de auto projeção do autor aí, viu? Hahahaha. Eu não sei porque, mas identifiquei na atidude dele num trecho que eu já comentei aqui.... "Vivia mesmo entre as lacunas do dia, e se alguém lhe afirmasse que ele vivia de fazer nada, ele riria concordando."
Acho que você me compreende, hahaha.
Legalzão, mano.
Dois abrazzi!
Chammé, meu querido... que sensibilidade! Que texto elegante, sutil, primoroso! Que personagem rico, profundo, raso, enigmático, comum, raro, pitoresco... poliédrico! E como você soube apresentá-lo com delicadeza e, ao mesmo tempo, de forma contundente.
Yan é de longe_estrangeiro_ mas vizinho. Solitário, mas sociável e afável. Intelectual, mas casual e cotidiano. Paternal, mas lobo solitário... Compor uma figura dessas sem notas dissonantes é algo meritório e lhe faz digno de uma cadeira nas mais altas rodas literárias.
A passagem da nostalgia à morte foi de uma maestria, que cá estou a reverenciá-lo. Meus respeitos.
talvez, um pouco auto-biografico esse Yan, ou nao? ficou bonito, bem contato, bem escrito, etc e tal. eu senti que vc tá escrevendo com mais intimidade. nao acho que seja impressao.
ta de parabens. continue escrevendo chamezes. baotivê.
abs.
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