Na terrível zona de sombras habitada pelos amantes em desalinho eles se debatiam. Pelo freio da polidez quase santidade, ele sobrevivia. A carne roxa, dura, tensa. Nunca suas diferenças foram tão flagrantes quanto agora, um casal avesso pelas pálpebras, antiestético, antiético e sem futuro feliz. Ela uma galinha, ele um urso. Ela soberba, Ele sórdido. Eles, uma tarde.
Sem muito se importar, ela passa por ele. Vira as costas. O ignora solenemente. Ele, palpitando o amor partido, mantém uma expressão cordial. Rosto plácido, sereno. Talvez não esteja feliz, mas aparenta um contentamento satisfatório. Semblante de promessa e um rabisco inicial. Desenha sobre uma tela presa na árvore algo ainda indecifrável.
No outro lado da vida-folha o rabisco forma uma figura assustadora, ele mantém a expressão de contentamento misturado a algo menos nobre. Os caroços da memória e lampejos de libido. E espasmos de lucidez. E a figura feia e ela com medo. Ela totalmente entregue à imagem. A bichinha está assustada, apavorada, com as penas murchas, postura de quem perdeu. Quer chorar e não sabe como. Voltou por medo, covardia, dúvida, falta de entendimento. Ele cruel. Ela galinha.
3 comentários:
"Tu onça tu,
eu jacaré"
Que coisa legal, Rachel. Tá tudo dentro ali da imagem. E é muito engraçada essa mudança de linguagem, essa disparidade de tom entre o desenho e o conto. Achei bom, explora uma obra aleatória de um jeitão bem Rachel. Num é? Hahaha.
Tem uns trechos ótimos. Quero escrever um conto dentro da "zona de sombras habitada pelos amantes em desalinho". Isso é um cenário, uma cidadela inteira em penumbra. Que legal.
A relação dos dois é curiosa também. Olhando prà imagem, quem diria que se trata de um casal? É engraçado ver esses elos criados no conto. Ah, diz uma coisa: como o urso pode ser cruel, se vive no freio da santíssima polidez? Acho que a postura-de-quem-perdeu é pura dissimulação dessa galinha sapeca.
Viva, Rachele!
Muito legal.
Victorete,
Polidez quase santa pode ser cruel, bem cruel.
Ahh faltou dizer que isso foi um exercício que me propus, dentro do contexto de uma residência artística. E devo dizer que tem me transformado profundamente o que experimento lá, me toca realmente, me acessa numa intimidade absurda, num nível que só a necessidade da escrita tinha conseguido.
Beijo!
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