11.1.09

O Jogador


Meus cumprimentos a todos os da casa.



para Flávio B.


No dia em que você voltou, chegou à casa exatamente quando eu já contava vinte e sete cachorros no portão. Não pareceu curioso ou mesmo interessado no fato; pude reparar que, coincidência ou não, todos silenciaram enquanto você passava. Nenhum deles estava livre de pulgas ou feridas; todos grunhiam, brigavam por espaço e rosnavam enquanto se acomodavam sob as flores da entrada. Ainda chegaram uns tantos em levas posteriores e, por fim, isolaram toda a fachada da casa, o jardim e os portões. Acredito que, naquele dia, nenhum dos cães vadios da cidade desviou da mais insólita matilha de que já tive notícia.


Lembro que você me pediu que buscasse uma cerveja, que tossiu no primeiro trago e pediu que eu também esperasse que ela esquentasse um pouco para que pudéssemos bebê-la juntos. Conversamos durante horas no sofá branco e surrado da sala, quase sempre sobre suas histórias de uma juventude longínqua, em tempos imemoriais e lugares esquecidos, casos tão vivos e formidáveis, que eu infantilmente imaginava se não passariam todos de invenção. Você falou bastante sobre as árvores do jardim, especialmente sobre a mangueira que permanece atrás da casa e um pinheiro que nunca deveríamos plantar, salvo se quiséssemos atrair a morte. Irritou-se quando, atencioso, respondi que não ao menino que perguntava do portão se poderia pegar as romãs caídas no quintal. Estranhamente não havia nenhuma.


Você foi ao quarto, vestiu a blusa amarela de mangas compridas e penteou os cabelos amarelecidos, voltou à sala para assistir o jornal, mas não esperou que começasse a novela, tamborilou os nós dos dedos no tampo da mesa e cantarolou uma ou duas vezes uma melodia estranha que, até hoje, me vem à memória quando os dias ficam mais alheios e nossa casa surge feito uma brasa na retina. Antes de deitar para dormir foi resoluto ao portão e expulsou a força todos os cães, que não estavam dispostos a abandonar sua estranha vigília, porém em nenhum momento foram hostis, nem mesmo quando você espancou um mais pesado e teimoso que insistia em manter seu lugar. Entrou e deitou-se sem desejar boa noite ou reclamar do volume da televisão. Minutos depois, lá estavam eles novamente, mais de cinqüenta vira-latas espalhados no caminho que vai do portão à varanda. Não dormi bem e notei que, durante a noite, o número de animais diminuía pouco a pouco, até que na última vez em que me levantei, vi somente uma cadela preta em meio às roseiras, com as patas sobrepostas e o peito manchado de branco.


Acordei no fim da manhã e descobri que naquele treze de junho você partiu enquanto eu dormia. Haviam levado você, atravessando silenciosamente a sala onde eu descansava, sobre o colchonete. Não estranhei quando disseram que todos os cachorros da cidade haviam sumido e à tarde tive vontade de abrir seu armário. Encontrei dezenas de romãs e umas fotos amareladas de pessoas que não conheci, entre elas a do time do São Cristóvão de 1937. Não pude encontrar seu baralho nem as fichas de jogo.


Hoje creio que lembranças como essas desaparecem todos os dias e que, também eu, um dia, sobreviverei apenas na memória de alguém, por algum tempo. Gosto, ainda, de imaginar que você sorria enquando passava por mim, carregado pela sala naquela manhã. E tento deixar nestas linhas o pouco que restou de você, para que sua memória possa, assim, me ultrapassar e, um dia, nossos tempos e estados possam coincidir uma vez mais; talvez, neste dia, iremos beber novamente, em casa, em sonhos, numa conversa, alhures.

7 comentários:

Heyk disse...

Mano,
o texto é chocante. Absurdo.

Bemvindo demais. caceta! Eu fiquei espantado com a precisão das frases. Com a montagem de um enrredo de tamanho certo a altamente danoso a sanidade. Um texto enlouquecedor. Vou voltar pra olhar mais pra ele.

Esse é o tal que é enorme e foi esquartejado pro ser posto aqui? Se for, aprovado. Em partes será lindo.

Rachel Souza disse...

Lindíssimo!
Preciso lê-lo novemente, na verdade nunca leio uma coisa uma vez só e,nesse texto,voltarei pra ver se ainda me sobra um dedo de angústia, de melancolia e saudosismo... volto!
Inté mais vê!

Victor Meira disse...

Cacete...

Me impressiona em todas as faces bem lapidadas da narrativa, a começar pelo constante enigma que flutua sobre o teto da personagem que vem e vai - cheio de uma linguagem tipicamente onírica. Entretanto, o texto é muito amarrado, com figuras sóbrias (surpreendentemente sóbrias) e sequinhas: a dualidade cães-romãs, como que um reflexo razão-sentimentos.

Acho linda a ausência dos joguetes nas lembranças - só lembranças e uma saudade: a memória de alguém amado. Durante a estadia, há pensamento, e não se vê as romãs no quintal.

A parte em que ele adormece e vê apenas a cadela preta por último é fantástica - tem todo um requinte de sensibilidade e simplicidade figurativa; uma lucidez, uma coisa bonita.

Vinicius, gostei muito mesmo. Quero mais nos próximos dias 11. Teu texto me fez rever o meu (coisa séria, viu?).

Um abraço!

Lírica disse...

Puxa, que sensibilidade... Que sublimes símbolos! Que trama bem urdida de realidade fantasmática...
A linguagem interior numa fluência ESPANTOSA consegue nos remeter de um para outro lado do tempo e do espaço e do onírico para o sensível com tanta intensidade que parece determinada a nos sacudir, a nos desmontar e nos fazer seguir esse cortejo pelo reswto denossas vidas para que nenhuma partícula de lembrança se perca do que se desmaterializou, até que se reintegre, e nós a isso, teletransportados a um reencontro ideal.
É muito para ser dito com pouco. Eu falaria da camisa amarela, da tosse, das romãs, dos cães... mas é hora de fazer um pouco de silêncio aqui dentro e apenas velar.

tomazmusso disse...

Saudações galera! primeiramente quero parabenizar a galera responsável por isto, tá lindo! gostei da logo, gosto como é feita a troca com os leitores e amigos, sempre carinhosa e bem humorada. e depois dizer que os textos são ótimos e o pessoal tem muito o que mostrar. Quanto ao texto do Vinícius, é difícil falar, posso dizer que é interessantíssimo, aflitivo, e de uma calma absurda, uma fluência aliada da leitura, da gosto de ler coisa boa assim.
Abraços

Chammé disse...

Vinicius, é isso ai man: putzgrila e pausa para silêncio.
Caramba, que peso nesse texto. Não é à toa que em todos os comentários tem um "pera aí, quero ler de novo". Essa história é um suco concentrado, rende para uns 20 litros de conversa.

No pormenor, o que é muito forte é a descrição. Tanto que até comentei com o Victor: dava um filme fácil. Lynch concordaria comigo. Depois do primeiro parágrafo liguei minha câmera pra tentar enquadrar tudo que você dizia. Foi fantóistic (como diria Jamie Oliver). A descrição de um sofá mostra a sala inteira. A de um cabelo amarelecido pinta uma personagem. E assim vai.

Densidade, meu caro. É isso que encontramos nessas linhas.

Isaac Frederico disse...

pois é, é bom demais que esse já consagrado texto encontre agora eco aqui no maná;
a densidade é típica do vinícius, se vê muito nos poemas, a maioria deles traz essa típica sensação de "tiro na cara".
fera, brodinho.