25.6.08

A Parte de Trás

Soou sem eco: cadê a minha arte?

A lembrança do grito reverberava pelas paredes de meu crânio enquanto, fronte encharcada, eu acordava de um sonho terrível. O quarto estava escuro. Era um cubículo, e era tão lotado de telas já desvirginadas que mal conseguia fornecer qualquer possibilidade de locomoção. Embrenhei-me pelo estreito até o interruptor e tentei acender a luz. O clique soou em vão. Esqueci, mais uma vez, de pagar a conta. Tateei pelo armário em busca das velas que eu já havia comprado da última vez que isso acontecera. O celular me mostrou que a noite caminhava pelos primeiros minutos das oito horas.

Ouvi passos, baques ribombantes e surdos no corredor do andar. Uma mão bateu na porta quatro vezes. Abri, e Luís surgiu me olhando com aspecto analítico, segurando um quadro meu coberto por um manto. Eu acabara de acender uma vela, e a segurava. Ele começou a esticar um sorriso. Disse que meu cabelo estava engraçado e entrou, por fim.

- Preciso te dizer, cara: você acertou, nesse último. Acertou em cheio. É o melhor que você já pintou. Está num nível diferente de todos os outros. Você atingiu o que se espera de um grande artista, cara. É simplesmente genial. Sua arte acaba de se dividir entre esse quadro e todo o resto que veio antes.

Enquanto dizia, retirou o manto. Vi a armação da parte de trás do quadro. Fui até o quadro e o virei, para vê-lo de frente. Assim que virei, vi novamente a armação, como se ambos os lados fossem armação. Tornei a virar: armação. Arregalei os olhos, pasmo. Onde estava a minha pintura?

- Não consigo ver nada! - exclamei, em lamúria.

Olhei pra ele em busca de entendimento, e ele estava em pé, impávido em minha sala pouco iluminada pela vela. No lugar de sua cabeça havia um vaso de samambaia.

5 comentários:

Isaac Frederico disse...

valeu pela visita, victor.

gostei bastante deste pequeno conto que se desenvolve sem os exageros expressivos tão presentes em textos amadores e culmina no final fantasmagórico e misterioso. seria um sonho ?

como eu vinha falando com o heyk, a confusão é um estado da mente, mas não um estado indesejável da mente.

abraços

FlaM disse...

ai, genial!
Adorei! Belo e surpreendente texto.
Apenas, se me permite, caro autor, eu sugerira a eliminação do insuportável cacófato "uma mão", mediante a substituição do "uma" pelo artigo "a". (a mão dos passos no corredor...)
palpitinho, sorry!
bj, Flávia

Heyk disse...

Gente, recorto conversa interna de 11/06:

legal, é uma recriação da conversa sobre o 59%.
vc se acha um artista plástico. acha mais emocionante do que ser poeta? eu até que não acho. mas que é romântico ser pintor num apartamento que não paga a conta de luz é.
Sabe, isso foi legal porque com a história de que tudo é armação me veio a estrutura, todo quadro bom, bom poema, bom pra mim teria que ter a ver com estrutura, eu sou o Luís cabeça-de-samambaia aí. Não acho que é assim, só a estrutura, mas gostei de ver isso, porque tava lendo levi-strauss ontem e dá-lhe estruturalismo. Aí agora você com essa papo de que o quadro melhor é um objeto, é uma armação, é bom porque descamba pra outra coisa: a melhor pintura é quando a pintura deixa de ser pintura pra se transfomar em objeto. Madeira e pano, madeira e pano. Olha que legal, a melhor pintura não é uma pintura, é um objeto. Ótimo, Houve uma transição, poeta.

Ótimo texto, conceitual pra caralho, e bem escrito, sonoro, o começo de seus textos costuma ser mais poético, depois eles costumam cair em diálogo normal. Esse segura um pouco mais a poesia. Mas isso só me faz pensar que vc é poeta. Segura os textos a partir de uma construção de algumas linhas poéticas e um bom insight. poeta. Sei lá da prosa, mas não te desencorajo. Ia ser ótimo uma obra de muitos insights e muita poesia, mesmo em prosa.

Ótimo, fiquei bem orgulhoso de você. Em julho, vai trabalhar em dobro ou vai só trabalhar e ficar em casa do período da noite? Se for, vamos fechar logo um livro, começar a mandar pras editoras, acho que tá conciso já.

Abração.

Heyk

Heyk disse...

cacofonia é poesia tbm, flávia!

Victor Meira disse...

Hahaha, qual a diferença entre o poeta e o artista plástico, nego?? (putz, soou que nem aquelas piadinhas, né?).

Olha, tô escrevendo uma série que integra alguns contos meus. O conto que protagoniza a série é aquele que tá de capa no Quadrado (No Topo da Anti-Escada), e o conto começa a conversar com outros (Amarelo, O Dia dos Vagalumes, e mais outros). O projeto tá em andamento, mas penso que termino ele em breve. Aí a gente pode mandar coisa pra editora sim. Acho legal.

Massa!

Flam,
Valeu o palpitinho, valeu mesmo. Olha, penso que se eu tivesse uma oportunidade pra recitar meu conto (o que já não é tão usual), eu faria a alteração sim. Por hora, enquanto escrito, gosto de manter como está. Até porque o cacófago é meramente fonético.

Legal.