4.6.08

Ares de sobriedade

Acordou cedo aquele dia - como há tempo não fazia - sem que nenhuma contingência das circunstâncias ou da rotina a impusessem o desvencilhar melindroso do sono e dos lençóis que vagamente a cobriam, naquele horário em que o sol ainda não aquece e, timidamente, se mostra e reflete seu raios esparsos nas águas do porto.
Acordou tomada levemente por uma ânsia de se manter sóbria ao longo de todo aquele dia que, por antecipação, lhe parecia de todo vazio e de uma densidade insossa. Levantou vagarosa da cama e dirigiu-se a cozinha pra fazer um chá de cidreira, numa tentativa esquiva de manter tais ares de sobriedade, acalentando o peito e aquecendo a voz, que nunca sabia o que dizer quando ressoava, alta e irredutível, a sensação de que pouco restava a ser dito.
Voltou pro quarto com sua paliativa dose de sobriedade nas mãos, a formar aroma em espirais mornas, compondo pequenas gotículas nas bordas da xícara ao contato do ar úmido alojado por entre as paredes, o piso e o teto daquele cômodo mal arquitetado, mas providencial. Tomou o ‘jogo da amarelinha' nas mãos e pôs-se a ler, numa tentativa de, talvez, alcançar o céu, que através da vida fora dos livros ou dos riscos limítrofes de giz branco traçados no chão lhe parecia impossível chegar.

...

Três dias depois se cansou das tais tentativas de apaziguar-se tomando chá e lendo Cortázar, acendeu um cigarro e tomou café. A falsa sobriedade transmitida pela fumaça do cigarro lhe parecia menos fingida do que a contida naquele chá.

4 comentários:

Victor Meira disse...

Bonito. Me incomodo um poquinho com a saturação descritiva em relação à pouca idéia. Mas sei que a intenção do texto é bastante plástica, palavrear sensibilidade.

E é lindo para o que se propõe.

Priscila Milanez disse...

Ei Victor,
Obrigada pelo comentário. Reafirmo o que vc parece ter percebido, a "saturação descritiva" faz parte da proposta, sim. É intencional e mas não pretensiosa.
Já o que vc chama de "pouca de idéia" é a lacuna que não clama por preenchimento (pelo menos não aos meus ouvidos enquanto escrevo...talvez, ao do leitor enquanto lê):digo sem exatidão o que quero dizer e apenas. E aquilo que, para mim, não carece de ser dito é transportado para planos sensoriais diferentes que se entrecruzam no texto. Faço dos meus textos ensaios sinestésicos e reticentes, talvez...

Gostei das suas considerações.
Abraços.

Victor Meira disse...

Sensibilidade, plasticidade, sinestesia e reticência.
Tô gostando disso.

Escrevo ensaios como esse, de sensibilidade, mas raramente posto. Gosto de pensar que o apreço estético deve ficar a cargo da poesia. Questão de gosto mesmo. Pra mim, a plasticidade deve estar a favor da idéia, e não se sustenta direito sozinha.

Somos réptil e mamífero na mesma floresta. Escrevemos com letras diferentes. Viva isso.

Tenho gostado das tuas postagens.
Bêjo!

Heyk disse...

Caramba, o texto é bom.

è coisa pessoal, disse isso ao victor também: não gosto de : aquele, aquelas, essas coisas demonstrativas que dizem pouco sobre o que a coisa é, mas passam a sensação de que deveríamos saber, isso não gosto. Acho que quebra o clima.

Mas o texto é bem bom. Muito legal. Gostei de novo. Que legal. É uma coisa interessante pra mim.

Não acho que tem pouca idéia. A forma com que as coisas são vistas e descritas dão a profundidamente das sensações em jogo no texto.

E acho sim que a plásticidade se sustenta. Mas num abro mão do peso de sentido do texto, tentei já, mas sermpre vem forte. Forte!

Viva a coisa!

Abraços!