6.2.08

Metafísicas da Infância

E nada de pensar na cor preta durante o limbo.
Tô de olho.

Ainda sinto latejar meu crânio recém despedaçado por uma bala de fuzil. Eu e o Péco estávamos a espiar a vizinha tomando banho no prédio da frente. Uma gostosa, morena, pele clarinha e sardinhas no rosto. Peitinhos, quadril largo, e uma bunda que não dava pra ver porque a janela dela não era muito grande. Não lembro muito mais que isso e não faço idéia do lugar de onde vieram as balas.

Sei que o tempo e o espaço sumiram. Não de uma só vez, mas seguidos de um bocado de coisas que acontecem muito rápido. A luz do quarto irrompeu num estouro, e dali caiu uma torrente grossa de água escura. O lugar inteiro pareceu bocejar, e tudo ficou mole e mais quente. Em seguida tudo encolhe e nossa idéia flutua sem corpo ou qualquer parâmetro material, num limbo que não tem cor. De qualquer forma, senti que Péco ainda estava por perto.

Surge então uma senhora toda de branco que aparece em paz, e vem em minha direção, como que pra me alentar.

- Olha Péco, é Maria, Nossa Senhora.

Por alguma razão, havia som. Um som aquoso, túrgido, grave e lento.

- Não vejo nada Cezar, nenhuma senhora.
- É essa aí na nossa frente, de branco.

Não vou mentir: Nossa Senhora não era nada parecida com aqueles quadros da catedral. Nossa Senhora é a morena gostosa do prédio da frente.

- Cezar, tô vendo um cara.
- Não viaja, velho.
- Sério.

A imagem de Maria começou a ficar embaçada, e eu não enxergava direito.

- Ele tem uma capa preta!
- Hã?
- É o ceifador, Cezar, a morte! – berrou aflito.

Péco era judeu, eu era católico. Isso há uns minutos atrás. Agora a gente torcia pro mesmo time. Eu enxergava o ceifador agora também. E ele vinha com sua lâmina em minha direção quando eu tive uma idéia extraordinária.

- Não é o ceifador não Péco, é teu pai vindo te acordar.

Ele parou de gemer.

- Olha, é mesmo. É meu pai! – ele ria que nem um bobo - Acho que a gente deve estar sonhando, Cezar.
- Verdade. – dissimulei – Cê vai acordar?
- Ah, eu vou cara, tô cansado desse pesadelo.

E eu não senti mais a voz nem a presença de Péco. Agora sim eu tava morrendo de medo. O ceifador estava já perto de mim com a sua lâmina. Será que eu teria feito meu amigo voltar à vida ao sugerir que era o pai dele indo acordar ele? Como eu faria isso comigo? Eu não conseguia me enganar, não conseguia tirar a imagem do ceifador vindo pra me levar embora. Mas eu havia entendido aquilo, e de alguma forma tinha tirado o Péco dessa. Ou será que não? Será que ao ver a morte como uma figura agradável a gente simplesmente aceita e é levado?

Num estalo, percebi que o ceifador não chegava nunca até mim, que nem quando a gente tenta correr atrás da lua. Parei de temer.

Agora se dava o dilema. Se eu aceitar o ceifador, ele me leva que nem o Péco fora levado. Resta saber se há diferença em ser levado pelo ceifador ou por uma figura amigável, como a Nossa Senhora gostosa do prédio da frente, ou meu pai, minha mãe, Jesus, Krishna, ou qualquer outro cara do bem.

A morte apertou o passo e me alcançou. Meu coração só não congelou porque nem gelo nem coração existiam mais.

- Você já entendeu – disse com uma voz retumbante que parecia o crepitar de uma enorme fogueira de São João.

Ela começou a ir embora, como que sendo sugada pelo nada. Tudo começou a correr ao contrário no tempo e novamente eu senti a presença de Péco. As coisas foram tomando forma, a água voltou pra dentro da lâmpada, as paredes ganharam cor novamente. Meu crânio se juntou de novo, com uma sensação de formigamento. Depois, vi a bala que outrora veio em minha direção voltando ao ponto de partida, que era muito longe. Vi um cara na rua que usava uma camisa vermelha e portava um rifle. Era tudo que dava pra ver. Vi a morena tomando banho do fim pro começo. E então o tempo começou a se mover normalmente outra vez.

- Rápido Péco, vamo sair da janela.

Ele pareceu entender e nós corremos para a porta do quarto e ficamos olhando em expectativa para a janela. A bala veio como um relâmpago e atingiu a lâmpada do quarto, furou o encanamento do andar de cima, e começou a jorrar água no apartamento inteiro. Eu e ele só olhamos um pro outro com os olhos arregalados e desatamos a gargalhar.

Minha mãe ia ficar furiosa.

3 comentários:

Alben disse...

como sempre muito bom Mr. Victz...

só achei que você tropeçou várias vezes na narração, não fica claro se os dois personagens se intercalam ou a narração é feita só por um deles, em vários pontos do texto isso causa confusão.

de resto parabéns, gostei do final, bem inocente assim...


abraço aos zinabrenses todos

Lírica disse...

Victor... é surpreendente a sua descrição dos sintomas de "morte".
O questionamento filosófico-religioso é pertinente e profundo apesar de nào comprometer o tom coloquial da narrativa. o texto progride e regride no tempo, dando uma impresão visual, como se uma câmera o lesse. Faz um curta disso, cara! Dá um tratado de tautologia! E os arquétipos! Todos presentes!
a inocência da narrativa é uma cilada. Na verdade há muita maturidade e profundidade. Esse contraponto também é genial.
Formidable!
Lírica.

Heyk disse...

então, eu gostei.

e não concordo que haja qualquer confusão de compreensão no texto, pra mim correu maravilhosamente bem e se fosse assim com dois narradores ia ser legal tbm.

Bom, concordo que é bem bom imagisticamente, com a relação com o tempo é bom tbm. Magistral a composição. Nada de novo do ponto de vista de estrutura: alguém me morre aí resolve alguma coisa e e volta a vida, mas tudo bem o texto é bem resolvido.

E concordo de novo com a coisa do texto ter um fim inocente, bonito no estilo dos dois indiozinhos do castelo ratimbum ou algo assim, que acaba com um sorriso meio gargalhada e fica tudo em paz.

Viva a poética intensa de moral da história infanto juvenil.