9.3.10

Vegetal

Eu fico um bom tempo no supermercado até achar a melhor cebola para comprar. E comprei uma que passou em todos os meus testes. Só em casa deu pra ver que as partes bem no miolo já estavam escuras. Julguei ser algo impossível de deduzir numa olhada de supermercado. Mas existe uma decepção que é pior que atraso no almoço. É perceber que a cebola é uma metáfora sua. E que você pode parecer bem na frente de todos, com sua casca sempre dourada em qualquer conversa com conhecidos, mas que geralmente seu olho fica mareado quando você olha a rua da janela da sua casa. E que alguns assuntos podem expor essa tal escuridão interna, mas é sempre possível desviar do olhar do interlocutor. Ou ser engraçado com ele, que é claramente o melhor método. Porém a putrefação é um processo expansivo, e a saída higiênica mais recomendada é jogar fora as partes ruins, e conservar as boas na geladeira. O que de fato funciona, mas não sem gerar dois efeitos colaterais: a sensação de um vazio no lugar do miolo e o congelamento. Você pode congelar diante de muitas coisas. Simplesmente congelar. E vai doer mais naquelas que você ama. Você pode ser brilhante no que faz, mas só amanhã. Hoje você irá dormir o máximo que puder e os dias serão muito menores para uma vida simples. Um filme vai passar na TV cheio de conflitos muito reais. Mas algum milagre narrativo resolve todos os conflitos, e é aparentemente inexplicável como alguém pode se sentir triste olhando para um final feliz. Mas a cebola que eu comprei no mercado esses dias entendia. Ela simplesmente mostrou que estava escura por dentro no primeiro corte, sem nenhum sinal de pudor. Isso porque em um dos filmes do Godard aparece algo do tipo: “Nós somos mortos em liberdade condicional. E as árvores?”. Ela me explicou que a frase não tinha nada a ver com mortalidade, já que tanto as árvores quanto as cebolas morrem. Ela me explicou que as árvores não sentem a dor do mundo porque elas não têm sistema nervoso central, e que tinha uma explicação melhor ainda. Ela me explicou que as árvores sabem contemplar e viver com o vazio.

13 comentários:

Carina disse...

lindo texto, meu caro amigo. lindo texto.

tomazmusso disse...

muito bonito e... descolado, curto e profundo, várias portas pra se entrar no texto. textinho universal...fala umas verdades, ou aponta...

Victor Meira disse...

"A putrefação é um processo expansivo". Que ótimo isso. Quem dera pudéssemos jogar fora o miolo pútrido. Antes, a gente acredita que a intenção de melhorar também é um processo expansivo (de fora pra dentro).

Mas a cebola é um caso ótimo. Porque o que se chama de casca na verdade é mais fruta, é mais carne da fruta, tão comestível quanto o centro. É um tipo de casca que em nada é diferente da polpa. Jogar fora o centro podre seria mera perda quantitativa. Vê só: a cebola desmiolada te conduziu esclarecidamente por um bom enigma sensivel do mano-mestre João-Lucas.

As árvores... Que tipo de liberdade têm as árvores, inconscientes como são? Não sei se sabem contemplar - sabem ser contempladas. Mas é indiscutível que sabem viver com o vazio. Mas talvez não sejamos sensíveis o suficiente pra perceber o tipo de consciência que as árvores possuem.

Bom texto, mano, do corazonzinho ae. Senti uma pitadinha de Salinger na fluência e tom do relato. Mas o tempero mais forte que eu senti foi o Don Hertzfeldt. :)

Ótimo tê-lo vivo aqui na roda, mano.

(Caralho... Quando fui transcrever lá em cima o trecho entre aspas, escrevi "a putrefação é um processo criativo"... Freud tá olhando lá de baixo e rachando o bico).

Chammé disse...

Bença Carinão, e bença Tomaz Musso, que sempre dá uma olhada por aqui. Valeu brou.

Victão, além dos autores que vc citou, uma influência forte foi bem na parte que você gostou, quando o poeta fala "o centro envenenava as extremidades". Repare que é a mesma coisa. No mais, quero deixar seus questionamentos ardendo aqui, e fiquei curioso pra saber qual é o enigma sensível do mano-mestre João-Lucas. THX?

Leo Curcino disse...

"Ela me explicou que as árvores sabem contemplar e viver com o vazio." que volta em Chammé? Lindo, cara! Você pegou uma cebola e fez arte com ela.

Pedro Gama disse...

Falou tudo Curcino! O Chammé fez arte com a cebola! Parabéns pelo texto Chammé, ler apenas uma vez não é o suficiente!!!

Pedro Gama disse...

Ah esqueci de falar... Amanhã (sexta dia 12/03), vai rolar lá no MuBE a inauguração da exposição Graffiti fine Art, é a sexta edição do projeto e confesso que está bem legal, com graffitis em paredes, telas (Obs: não quero causar uma discussão sobre oq é ou não graffiti), instalações e esculturas. Vou estar trabalhando durante a festa, mas quem quiser ir lá curtir um som e Heinekein à vontade e de graça é mais que bem vindo. O endereço é Av Europa 218, esquina com a rua Alemanha apartir das 19h. abraço zinabrenses

Philippe Bacana disse...

depois da caçamba de lixo, num me esqueço mais de seus textos chamméquito.
mto bom!!!!

parabens querido!

Iuri disse...

Cebolaticamente joinha.

william disse...

Belo texto. aliás o alto nivel dos teus textos têm sido uma constante aqui no maná. abraço.

Rachel Souza disse...

Uma chamada no Chammé: e a continuação de nossa novela,caboclo?!
Ó a preguiça aí, Macunaíma!rs

Lírica disse...

Chammé, bom te ler. Agradável e remete a uma reflexão rica. A figura metafórica da cebola é bem interessante porque sobrepõe camadas da mesma substância e o apodrecer começa, geralmente, de dentro, o que sempre é insuspeito(!). Bom, tem cebola e gente que faz o contrário: começa a apodrecer por fora, mas dentro tá puro e preservado. Mas uma coisa é certa: cebola ou gente, a gente julga pelo exterior... ou pelo que consegue acessar.
Conviver com o vazio, ou, parafraseando Lacan: com a FALTA é difícil, mas necessário.
Mas pensando o vazio como outras coisas, aí a gente vai longe...
Como você coloca parece ter a ver mesmo com o libertar-se da podridão. Isso demanda intervenção, abrir-se, deixar-se subtrair.
Vegetais, minerais e outros animais parecem não experimentar além da intuição e do instinto. A priori isso nos distingue como senhores da linguagem, contudo, algo sempre pode ficar oculto__ não comunicado até "quem não te conhece, que te compre"!
valeu, Chammé!
Abraço.

Henrique Maeda Smith disse...

Lindo meu querido!

A cebola, ao menos, agente sabe que não é doce.

Sobre a inconsciência das árvores, acho que são tão inconscientes como nós. Será que elas também podem crescer e se espalhar, a ponto de morrer pelo espaço que ocupam?

Como o peixe, morre pela boca.