1.6.09

Um cheiro forte, sintético

- Porra, que cheiro é esse?

O carro tava cheio e a gente se apertava no banco de trás. O Leco bolava um troço novo no banco da frente, dizendo que esse era pra estourar a cabeça, e os outros morriam de rir.

- Só eu tô sentindo? Que merda é essa?

Um odor forte, de verniz ou sei lá o que, empestava o carro todo, a ponto de arder os olhos. Mas parece que só eu sentia, só eu me incomodava.

- Fica quieto aí, Zula, caramba, mano... o cara já chega causando.

- Tá foda... - retruquei amuado.

- Mano, relaxa e dá um pega aí.

- Porra é essa?

- Anda logo, mano.

Todo mundo deu risada. Eu estava meio tenso, olhando pra eles de soslaio, com a sobrancelha emburrada. O Ducato dirigia que nem um imbecil.

- Ooooorra, caraiii!

A coisa era forte. Todo mundo se esborrachava de rir, e o cigarrinho foi passando de mão em mão. O Leco disse que era uma erva turca que ele tinha conseguido com um amigo lá de Istambul. Só que não deu dez minutos pra todo mundo parar de rir. A substância inibia qualquer extroversão, e te jogava num túnel de nulidade, numa caixa incolor e vazia, um pouco nauseante. Era meio ruim, mas todos os caras sorriam satisfeitos e sonolentos, curtindo o torpor da droga. Uma bosta.

Uma agitação súbita insurgiu. Vimos um trouxa, às quatro da madrugada, caminhando pela rua Santa Madalena. A gente não consegue resistir.

- Se fudeu, moleque!

Todo mundo saltou do carro e encurralou o transeunte. Era um menino com cara de sono, sóbrio, carregando apenas um livro. Puxei o estilete e nem falei mais nada: meti direto na barriga dele. Ele se protegeu, cortou a mão toda, saiu sangue de tudo quanto é parte. O Leco deu uma cabeçada e o menino caiu no chão, todo fodido. Não tinha nada na carteira dele, e o celular era o mais vagabundo de todos. Acho que a coisa que mais valia a pena ali era aquele livro, que era uma edição bacana, capa dura. Lia-se "O Diabo" na capa. O caras voltaram pro carro e, nesse meio tempo, o moleque falou:

- Lê o segundo parágrafo da página 25.

Me bateu uma confusão enorme. Que merda era aquilo? Num impulso de insolência, joguei grosseiramente o livro pelo bueiro do meio fio. Antes de entrar no carro, dei uma bicuda nas pernas do menino.

Quando entrei no carro o cheiro me invadiu novamente. Mas relevei: estava possuído por uma curiosidade absurda, infestada de arrependimento. O que havia no segundo parágrafo da página 25? O que havia naquele livro do diabo?

O carro andou apenas mais um quarteirão e, assim que freou no semáforo, explodiu. O estrondo foi enorme, mas o mais impressionante é que saiu, pra todo lado, um estouro de tinta magenta. Uma explosão viva, rósea, gritante. Havia dezenas de galões cheios no porta-malas. A silhueta do carro ficou desenhada no chão, rodeada de magenta vivo, que subia pelas paredes dos prédios ao redor - chegou a pintar a janela do quarto andar de um deles -, o semáforo, as placas, toda a calçada e as árvores. Uma ciranda poderosa que clareou a noite.

O menino, ainda jogado no chão há alguns metros, foi a única testemunha do trágico espetáculo. Apesar dos cortes, estava bem, e conseguiu voltar pra casa.

No dia seguinte havia uma multidão, já cedinho, ao redor do acontecido. Todos observavam cheios de terror, mas muito confusos com a beleza verdadeira e inegável que a visão exibia. O carro com os corpos queimados ainda estava lá - a polícia estava por vir - e, pela soma de tudo, nenhuma testemunha conseguiu, jamais, se livrar daquela memória.

Mas nada fora tão maravilhoso quanto ter presenciado o momento exato do acontecimento, e o garoto se lembrava de cada fração de segundo, como se conseguisse reviver a visão em velocidade reduzida, observando os braços de tinta volitando pelo ar, formando laços e formas expansivas, chocando contra os muros e chovendo, bem fininho, num último momento. A explosão magenta impregnou seu espírito na rua Santa Madalena.

6 comentários:

Guto Leite disse...

Grande Vítor, prosa vigorosa, meu caro. Confesso ter me estranhado um pouco os cortes no enredo, ter sentido falta de um ritmo mais delineado na história, mas o que não me impediu de gostar muito, cara! Grande abraço e ótima semana

Lírica disse...

Quanto do que não sabemos julgamos nos pertencer e mais, achaos estar em nosso direito dispor, despir e decompor? Tenho pensado em como amamos destruir, destruímos o que amamos, tememos o desconhecido e o destruímos também... mas continuando desconhecido, continua nos ameaçando até nos destruir também...
Vc simplesmente sintetiza tudo isso aí, com seu jeito absurdo de matar a gente de cuirosidade perplexa...

Leo Curcino disse...

cara, eu achei esse conto a sua cara, mas nao me pergunte porque. acho que é o conto que mais parece que vc está presente (e será que não está?).

o início já foi um tapa na cara da monotonia.

abraço. bom te ver!

Chammé disse...

"Ooooorra, caraiii!"
Pedro Chammé, The Chicago Tribune.

se fosse filme eu deixaria essa fala que consegui ouvir, distintamente, das minhas reminescências. Muito bom fiote, todas as imagens realmente existem, dá pra construir uma a uma. O que eu venho achando fascinante é esse senhor diretor de arte que eclode de vossa mercê, no menino maloqueiro que aprecia o design editorial do livro, ou da explosão magenta com verniz.
Num tem jeito, meu caro: do que a gente gosta a gente dá pala.

Abrazzi.

Victor Meira disse...

Chammé,
dou pala forte e apelo no metajogo, hahaha. Afinal, não-designers também gostam de design, e sabem quando estão olhando pra uma coisa bem feita, bonita.

Orrrrrra!

Philippe Bacana disse...

eu to besta, Vitor. sério.
eu queria fundir qualquer metal que parasse em pé, fazer uma estatua e dar nela um nome de algum bixo raro e te entregar.
certeza que eu to no meio dessa trama aí. esse negocio do assalto e do carro explodir magenta... só pode ser alguma intevençao q fiz num sonho perdido seu.
parabens pra nós, vitao.
esse aí ta na cabeceira.