9.6.09

Fogo Inerte

Já enrolava há uns trinta minutos na cama, olhando o feixe cinza que riscava o teto. Sair foi fácil, era só tirar a camiseta do pijama, colocar a calça social sobre as ceroulas, camisa, colete e o sobretudo. Sem gravata, de certo – eu não era um executivo, era só um homem que compreendia o glamour de seu tempo. Dei um tchau para a Sra.Weaver que ajeitava os vasos de aspidistra no minúsculo hall do prédio; na verdade era só um lugar para deixar os guarda-chuvas. Ventava muito na Glasshill St, quis entrar no café da primeira esquina. Os largos vitrôs com vista pra rua faziam de cada esguelha um enquadramento. Pedi latte no balcão para acompanhar o ragtime matinal que saia do rádio. Já que tudo ocorria a vinte e quatro quadros por segundo, abri a porta lateral verde com a outra mão no bolso, franzi as sobrancelhas para fingir que tinha um pensamento realmente intrigante, e empunhei um maço de Player’s Weights, que com uma beliscada fazia o filtro alcançar os lábios. De manhã a cidade exala algum tipo de charme, e eu era um dos poucos a reverberar isso. Fui abordado por um camarada negro, de cabelo armado:

- Eai rapaz. Cê toma quantos por dia pra ficar assim?

- Três.

Me deixou um sorriso simpático e irônico, e saiu com a sua namorada de cabelo sarará; era um black-power nacional. Olhei para o lado e vi um senhor de avental branco com pelos do peito na altura da gola, sobre o balcão de coxinhas, pastéis e assados. Vi a Nany CD´s com todo tipo de bugigangas, e um rapaz com um boné azul que estranhamente tinha uns brincos na aba, a frente de sua barraquinha com caixinhas plásticas descoradas. Vi camelôs, calçadões, prédios encardidos; senti tristeza nos ladrilhos preto e branco da calçada. Passei a mão perdido na minha nuca e tateei a gola de tactel. Qualquer discussão agora seria perda de tempo, negação de tudo aquilo que eu já havia superado. Por isso dei um trocado de imediato para o menino que me abordou; ele correu feliz na outra direção. Vi cabos de trólebus sobre ele. Era isso, trólebus. Parei num lugar onde parecia o ponto e fiquei esperando o próximo passar. Queria só entender por que todo aquele calor, e presumi que era um dia de sol no inverno – e eu usava sobretudo. Pronto, inspirei profundamente e soltei o ar. Com um trolley até dava pra chegar bem rápido na Rushworth St.

2 comentários:

Victor Meira disse...

Hahahaha, que tezããooooo! Fantástico seu conto, nego. É uma câmera, notando uma cidade que é Londres-Sampa... hm... uma Londres brazuca? Uma Londrina! Hahaha. Ié.

Tudo bem descritinho, tudo bem disposto. Gostoso de ler a personagem, muito bem entalhadinha e galã. É um Chammé meio Coppola, meio Welles ou Truffaut entre as aspidistras orwellianas e os trólebus (digo aqui de passagem que foi a Evelyn que me falou o que era um trólebus).

Surpreendente, mano. Tem um enigma ali no diálogo, que quebra a narração descritiva e adoça o andamento.

Legal demais, negão!

Carina disse...

ai...esse conto dá vontade de fumar...