10.5.09

Xangai, 1954

Prefácio
Aos frequentadores, perdão a demora do texto, mosquei mesmo. Mas nunca é tarde para um pouco de duplipensar: dia 10 é dia 9. Hoje é dia 9. Viva o partido.


Eu não falava tão mal assim. Isso é muito importante quando você é a única figura não oriental do recinto, e pior, na frente do quadro negro. A pequena sala agrupava pelo menos uns 20 jovens que aderiram à facção comunista: olhavam para mim de forma abismada, mas aparentavam compreender. Eu era americano (minha ascendência tcheca, contudo, colocava panos quentes na situação) e também linguista. E era sobre isso que lecionava naquele momento.

– Vejam, a comunicação rápida foi criada na guerra. Com toda esta revolução nas técnicas de combate que acabei de citar, os confrontos a base da explosão, ficou impossível guiar tropas só pelo comando de voz. Precisamos comandar elas com bandeiras, brasões, cores nos uniformes, textos curtos e diretos. Os Estados Unidos fazem um uso ridículo disso em suas propagandas, empurram produtos para as massas. Mas os conceitos são os mesmos. Não sei se vocês conhecem, mas a palavra slogan, do gaélico, significa grito de guerra. Já aqui, a comunicação é usada de um jeito totalmente diferente. Quantos aqui de vocês já conheceram Mao Tse-Tung pessoalmente? Ninguém, acredito. Mas esta é a questão. Vocês não precisam encontrar ele para saber o que ele pensa, como ele é, o que ele quer para a China. Os instrumentos de comunicação assumem esse posto. Não precisamos estar em todos os lugares ao mesmo tempo, qualquer acontecimento pode estar em nossa mente por outros meios. Isso é a mídia usada para o bem comum.

Culturalmente, não sei se minha explicação era a certa para o lugar. Apesar de me entenderem, minha retórica devia parecer bizarra para aquele grupo de jovens. A facção não pertencia diretamente a Mao, mas com a morte de Stalin no ano anterior, o recém-nomeado presidente chinês se tornava uma figura notável dentro do socialismo, e qualquer bando, por menor que fosse, queria mostrar respeito. Por isso, aos costumes ocidentais de pensamento do grande chefe, contratavam pessoas como eu para dar aula. Explicava aos garotos que a comunicação era, fazia e acontecia. Um papo em certo ponto visionário para aqueles tempos de combate só ideológico. Mas a guerra, em natureza, é terror e imprevisibilidade. E assim os frisos da pequena sala anunciavam o clarão que vinha de fora, acompanhado de um estrondo que derrubou o quadro negro da parede. Esteticamente desmoronada, minha sala de aula foi evacuada em pouco tempo. Saí quase ao final de todos; era todo adrenalina, mas mantinha a razão acesa. Já conhecia o prédio e procurei as salas que julguei seguras. Foi quando Yao Zhang me puxou pelo braço e descemos as escadas em direção ao subsolo.

– Isso é um ataque aliado?

– Esta tudo fora de controle, Klaus. Esse ataque é do próprio exército de Mao. Descobri há uns dez minutos, e me escondi. Acho que eles temem mais gente no poder, ou uma contra-revolução disfarçada. Esse é o motivo da ofensiva.

– É impressionante. Em qual momento da evolução o homem entendeu que brigar com idéias era brigar com o braço?

Meu papo pareceu um tanto filosófico para o momento, e Yao me deixou no corredor do subsolo. De qualquer jeito, não tirei o assunto da cabeça: quando é que um tratado de idéias chega às vias de fato? Já discuti muito nessa vida, e discordei também. Acho que nunca dei um soco na cara de ninguém por causa disso. Enfim, corri por várias passagens estreitas até uma porta preta, escrito “editor” em letras latinas. Entrei. Era uma despensa bem pequena com torneira, mal cabia eu e o rapaz de sobretudo marrom, que excentricamente tomava uma xícara de café, fumando. Sem me apresentar, fui direto ao ponto.

– Uma aula de comunicação no meio do front... pra quê?

– Nunca foi tão importante.

– Como é?

– É tudo. Tudo o que todo mundo sabe. Você conhece bem, é especialista em guerra. Qual foi o último homem morto que você viu?

– Nunca vi um.

– Pois bem. Você sabe o que o rádio sussurrou, o jornal te disse coisas também. Mas qual foi a última coisa que você realmente viu? Uma cena remota, talvez uma formiga morta ontem, na pia. Essa é a questão, ninguém nunca viu nada, pagaram pela entrada, sentaram e assistiram. Eles fazem o que querem, sem testemunhas. Duro é encarar os fatos. Você pode deixar as bombas explodindo lá fora. Ou percebe logo que é só o som do seu rádio-relógio.

3 comentários:

Victor Meira disse...

Caralho, Chammé, tô chocado com teu conto. Vou ler mais umas 43 vezes aqui, embora já soubesse de nuances via recortes verbalizados no nosso cotidianinho. Vou reler por que é bom.

Cacete mano, que coisa magnífica. Tô feliz.

Bom mesmo, nego, bom demais.

Carina disse...

hahahahaha sensacional.

a temática é ótima, todos os desdobramentos do pensar também.

Faço das minhas palavras as de Victor.

E viva o partido.

tomazmusso disse...

olha, muito bom mesmo! também adorei.
parece cenas de um romance. e é gostoso de ler, além das idéias bem articuladas. profissa!