17.5.09

Passagem

Tirou seus pertences da bolsa de tecido colorido comprada na lojinha do chinês da esquina e fez uma breve avaliação do que deveria ou não ser posto fora. O tecido, semi-translúcido ao sol, destoava de seu figurino em tons de bege. Era uma mulher discreta, sempre fora. Não haveria de ser agora, após o surgimento dos cabelos brancos e das varizes mais profundas, que mudaria. Não era de mudanças também. Ao todo suas características mais marcantes eram essas, a discrição e a aversão à mudanças, além dos lábios grandes, agora menores e pendentes em sulcos marcados na pele flácida de gozos e dissabores. A questão era simples, ver o que prestava ou não e jogar no lixo. Uma seleção das tranqueiras que as feminices suportam. Recostada ao poste, sem eira nem beira, passagem subterrâneas de ida, apenas ida, teve um lapso de memória. O sol era forte. As pessoas olhavam. Sentiu a pressão oscilar e a vista falhar, mais uma das sacanagens que lhe chicoteiam a existência. Perdeu-se em meio à caixas de remédio e receitas velhas. As chaves de casa e a foto 3X4 do neto mais velho pendendo das mãos enrugadas. Talvez fosse Alzheimer, atestou a medicina. Desmaiou no chão de urina. O relógio marcava 12:30 e 40º à sombra.

2 comentários:

bacana esquci a senha! disse...

eu juro que to vendo essa bolsa! sei exatamente que bolsa é essa! caramba!
ta lindo Raquel, e sua descritiva, só pra variar, incrivel...

um beijo. guti-guti.

Caco Pontes disse...

pré-destinada ao início do fim...