1.4.09

Haja Gim

O corpo nu suspirava na banheira, segurando uma garrafa de gim; outra, já vazia, repousava no piso úmido. Puxei uma cadeira da cozinha e me sentei ali no banheiro. Ele segurava um estilete na outra mão.

- Um dia o mundo vai acabar. Tudo vai acabar.

Eu mirava o teto, escutando. Relaxei as pernas.

- Como justificar qualquer esforço, então? - continuou. - Aliás, pra quê justificar qualquer vontade de continuar vivendo?

Não era bufa. Suas palavras eram líquidas e viscososas, um piche de profunda tristeza. Uma lamúria do âmago dos sentimentos numa alma torturada; desabafos fatais, à prova de qualquer consolo, bronca ou argumento. Tudo cheio de uma certeza absoluta, de uma verdade redentora e mais lúcida do que qualquer outra já trazida das trevas.

A banheira sempre fora hábito. Dessa vez, contudo, jazia ali dentro há quatorze dias. Sua aparência era funérea e miserável, transparente. O olhar era idiota, vago. O riso, raro, era amargo, e só se abria para ironias e pensamentos sardônicos. Meu conselho virou um estribilho e perdeu a força tencionada no parto: ele não sairia da banheira dessa vez. Também não tinha pressa pra usar a lâmina:

- Vou usá-la daqui a quarenta e dois anos.

Deixei-o e fui me deitar. Na manhã seguinte acordei com um sentimento de fraqueza e impotência. Tomei dois copos grandes de água - o ar ficava muito seco durante a noite - e voltei à cama. Em dois minutos eu comecei a entrar novamente no semi-idílio do começo do sono. Imagens se alternaram livres da autoridade ortodoxa da consciência e logo surgiu muito sangue, banhando todas as imagens, todas as paredes e sentimentos. Fui logo tomado por uma força desesperada de emersão e acordei num travesseiro todo ensangüentado. Cheio de tensão constatei, no espelho do banheiro, o vazamento pelo nariz.

- Problema no encanamento. - brinquei com ele.

Ele nem dormia mais. Enfiei papel higiênico na narina e voltei para a cama. De toda forma, qualquer outra coisa só aconteceria daqui a quarenta e dois anos.

4 comentários:

Lírica disse...

A morte de molho em barris de gim, envelhecida numa adega-toilete... Durma-se com um barulho desses! Mas nós dormimos... mesmo sabendo que "a morte mora ao lado"... mesmo que a temamos em nossos devaneios oníricos, mesmo que os nossos medos rompam nossas artérias e nos forcem a encará-los...
Que reflexão forte e crua sobre a morte!

Guto Leite disse...

Vixe, parceiro, vou destoar da Lírica no comentário... vi foi "Os sonhadores" do Bertolucci, uma existência mordaz e negativa em torno da banheira. Fui pra Kafka, Água Viva, essas obras. Bem interessante, parceiro! Talvez um bom fio pra ser redesfiado... Grande abraço

Chammé disse...

Fudidi, meu caro.
Tem duas interpretações muito boas aqui em cima. Vi "Os Sonhadores" e o negativismo que o Guto também sentiu, e pirei na interpretação da saudosa Lírica. Dormimos enquanto "A morte mora ao lado" foi pérola prêt-à-porter.

Voltando a ti, meu rapaz, tá tudo no lugar aqui, e o teu padrão já e forte. Tenho certeza que o personagem tinha bons motivos pra não viver. Só fiquei na vontade de ouvir isso um pouco mais dele.

Se os diálogos foram planejados para tamanho do texto ficar mais curto, vô ter que fazer o contraponto. Hable com nóis, Victao. Quem lê as primeiras letras com certeza vai ler até o fim, tua prosa tem ritmo.

Se não foi nada disso, pardón, e te devo uma breja. hehe.

Abrazzi.

Isaac Frederico disse...

po o contêto é completamento tenso, uma grande virtude !
o ápice, pra mim, é o "banho de sangue" ... me deu a idéia de que o cara tinha saído da banheira e matado o outro hehe
tensão total, gostei pra cacete, fui fumar um cigarro logo depois de ler, senão ficava difícil hehe
abração vítor.