17.2.09

Recém-nascido

Acordou estirado no chão da cozinha. O piso gelado e escorregadio fazia-se confortável, certamente bem mais que a dor de cabeça lancinante que lhe vitimava. Do seu lado, um porrete de madeira com respingos de um vermelho vivo. Levantou, ainda trôpego, escorando no balcão de mármore, apoio de refeições e lanches rápidos, e, balbuciou algumas palavras desordenadas. Sentia um clima estranho, diferente de tudo,de tudo... Procurou algo familiar naquele cubículo sujo, tentava identificar-se com algo, mas, nada...

A pia cheia de pratos e copos sebentos, algumas colheres e uma faca de pão com vestígios de uma pasta estranha que se assemelhava à alguma coisa com amendoim, ou sei lá o quê... No fogão, três panelas com restos de comida dentro, uma gororoba fétida feita num passado milenar que nenhum animal, por mais faminto que estivesse, arriscaria uma aventura, a não ser as moscas que rodeavam impávidas pelo local. Desconforto, calor, tontura! Nauseado, passou a mão na cabeça e percebeu um ferimento e uma pequena rachadura, a fonte da camisa manchada de sangue.

Personagem de si mesmo, alheio, uma máquina a ser reformatada, começou a ensaiar seriamente seu papel, resolveu pôr adiante uma vida nova, a única vida que se apresentava no momento... Abriu a torneira, a água caindo e ele olhando... Lavou o rosto com o sagrado líquido e com o detergente disponível em cima da pia imunda. A louça suja recebendo aquela solução aquosa,ele observando... Saiu com o rosto pingando. Intoxicado por pensamentos constantes de um passado agora esquecido, e de um futuro dependente de um presente nebuloso, procurou pistas em si mesmo, revirou os bolsos da calça jeans surrada e da blusa bege ensangüentada, achou umas notas de dinheiro, moedas, um dente de alho e um bilhete cínico de amor. Talvez tudo não passasse de uma grande brincadeira, um escárnio do destino, uma chuva etérea de confusão e neurose, mas o fato é que, ainda que dispendioso de muito esforço, ele simplesmente não lembrava quem era, nem o que estava fazendo ali.

Espectro com invólucro carnal. Reinventou-se homem, homem-gueto, encurralado na própria existência! O resto do mundo era uma abstração ainda maior, tudo mundo frio e calculado, uma agitada colméia de abelhas sem mel... Incapaz de distinguir com precisão as coisas que o cercavam, caminhou até sair da cozinha, esbarrou com uns sujeitos de péssimo humor, ouviu uns xingamentos e continuou andando, olhando tudo com muita estranheza. Percebeu um lugar amplo, perguntou à moça de carnes fartas e roupas mínimas onde eles estavam,ela disse: “10 real a informação”,ele assentiu confuso e descobriu estarem num armazén no cais do porto,nos arredores da praça Mauá. Não sabia o porquê, mas sentia-se alegre com o sol de luz suave a despontar às 5 da manhã, não entendia apenas aceitava. Recostou-se num canto, abaixou a braguilha e urinou como se fosse a primeira vez...

3 comentários:

Anônimo disse...

Conto muito bom. Parabéns!!

Flávia Muniz Cirilo disse...

caramba! fiqeui imaginando que festa foi essa!


bj

Victor Meira disse...

Braguilha! Yes!
Bom conto-recorte, Rachel. As descrições são doidonas.

Bem vinda ao Zinabre.
Beijos!