Prejudicada pelo calor intenso
(Rachel Souza)
Não tinha idéia do quanto queria algo maior que suas próprias dúvidas e demências diárias. Não calculava. Não sabia mensurar, simplesmente. Ouvia sempre, às 5:30, o vendedor de jornais gritar notícias de ladroagem grossa,política suja. Não entendia muito bem o porquê das coisas, mas não pegava bem andar por aí sem opinião formada sobre tudo. Mil vezes o conhecimento raso e rasteiro do que conhecimento algum. Sua vó estava certa... Mulher tem que rir e se mostrar razoavelmente bem-informada. Comprou o jornal. Lambeu feridas sociais descascadas embaladas pra presente,embrulho do peixe de amanhã. Cartas, Chave do trabalho esquecida em cima da mesa. Mulher flutuando em passos zombeteiros. Barulhinho de pássaros e Kenny G no elevador. Tristeza cósmica de dentes cariados sobre gengivas inflamadas. Por conta das filhas e do marido resolveu não mais um monte de coisas.Não mais fumar,não mais beber,não mais chegar tão tarde,não mais ganhar tão pouco,não mais trepar com qualquer um,n]ao mais reclamar da celulite. Não será feita nenhuma exceção,”não mais” um monte de coisas! Ela veste preto e cabelos tingidos de acaju. Ela tem fome e precisa se livrar daquela tendência pra morte. O fato é prontamente espalhado aos parentes e agregados: ”Alimentem-na,façam cócegas na infeliz”. Ela fugia das reuniões familiares e pintava as unhas com o descrédito das tardes de domingo. Abandonou o amante fixo e recomeçou projetos de segunda-feira. Saiu destinada a secar os vasinhos da perna, pequenas varizes azuladas de calibre médio.